Sem categoria - 06/02/2023

A responsabilidade trabalhista da Sociedade Anônima do Futebol na sucessão de empregadores

Por: Marcelo Mascaro Nascimento

O patrimônio milionário de alguns clubes de futebol, assim como a realização de transações de natureza econômica de montantes astronômicos, é fato público e notório. Apesar de o futebol nesses casos ter se tornado um negócio bastante lucrativo, a forma jurídica utilizada para a constituição dessas instituições ainda vinha sendo a da associação civil, cuja finalidade foge à obtenção de lucro.

Com vistas a adaptar a norma à realidade, foi promulgada a Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021, que cria a Sociedade Anônima do Futebol, apelidada de SAF. A Lei trata não apenas da constituição dessa nova figura jurídica, mas também dispõe sobre normas de governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e de seu regime tributário. 

A autorização legal para o clube de futebol se constituir em sociedade anônima não é novidade em nosso ordenamento, já que a Lei Pelé, Lei nº 9.615/98, já o fazia em seu artigo 27, § 9º.

Porém, a partir dessa regulamentação, a Lei 14.193/21 pretende incentivar a migração de associações civis de futebol para a forma da Sociedade Anônima do Futebol. Uma diferença fundamental entre as duas figuras é a possibilidade de distribuição de lucro aos acionistas da segunda, o que é vedado aos associados da associação civil.

As características próprias de um clube de futebol quando comparado a uma empresa ordinária exigem tratamento específico pela norma, de modo a preservar a natureza associativa do clube. Assim, a lei das Sociedades Anônimas, Lei nº 6.004/76, será aplicada somente subsidiariamente à SAF.

Tal como nas sociedades anônimas em geral, a SAF poderá ser fechada ou aberta, conforme os valores mobiliários de sua emissão estejam ou não admitidos à negociação no mercado de valores mobiliários.

Sob o ponto de vista das dívidas trabalhistas do clube de futebol, a SAF traz algumas consequências. Uma delas é a possibilidade de o clube constituído sob a forma de sociedade anônima, no caso de dificuldade financeira, aderir ao regime de recuperação judicial ou falência.

Outra consequência de relevância é o tratamento oferecido à responsabilidade da SAF em relação às dívidas do clube anteriores à sua constituição. Nos termos do artigo 9º, da Lei 14.193/21, a SAF somente terá responsabilidade pelas obrigações anteriores ou posteriores do clube original que possuam identidade com a atividade da nova sociedade. Isso porque a atividade principal dessa companhia deve ser a prática do futebol em competição profissional.

Assim, o clube que pratica outras atividades além do futebol, como por exemplo o atletismo, para se constituir em SAF deverá se desmembrar de modo que apenas seu setor dedicado ao futebol seja transferido para a nova sociedade, conservando as outras no clube originário. Ademais, a cisão do departamento de futebol deverá ser acompanhada da transferência do seu patrimônio relacionado a essa atividade.

Dessa forma, a SAF responderá pelas dívidas trabalhistas do clube que lhe deu origem desde que elas tenham relação com a atividade futebolística. Nesse sentido, o parágrafo único do referido artigo 9º determina de modo expresso que a sociedade anônima será responsável pelas dívidas trabalhistas dos atletas, membros da comissão técnica e funcionários cuja atividade principal seja vinculada diretamente ao departamento de futebol.

Em suma, a SAF será responsável pelas dívidas trabalhistas de todo empregado transferido a ela que no clube originário tenha trabalhado na atividade de futebol. A regra estabelecida pela norma, contudo, pode gerar alguma dúvida quanto a funcionários que compartilham atividades em diferentes departamentos do clube originário ou que exercem atividades não vinculadas ao departamento de futebol, mas que o beneficia direta ou indiretamente.

Sugerimos a análise de três casos hipotéticos. O profissional que se dedica exclusivamente ao treino dos atletas de futebol, o massagista que trata dos atletas de futebol e também de outras modalidades e o empregado do setor financeiro do clube que administra e executa pagamentos vinculados ao departamento de futebol e de outros.

Nos termos do parágrafo único do artigo 9ª, da Lei nº 14.193/21, não há dúvida de que o empregado que se dedicava exclusivamente ao treino dos atletas de futebol antes da instituição da SAF ao ser transferido para a nova companhia terá as obrigações trabalhistas devidas anteriores garantidas pela sociedade anônima. Essa é a determinação expressa do parágrafo único do artigo 9º.

Já o massagista que trata de atletas de diversas modalidades, entre elas a de futebol, e o empregado do setor financeiro que executa pagamentos vinculados ao departamento de futebol e de outros exige análise mais cuidadosa.

O caput do referido artigo 9º prevê que a SAF responde pelas obrigações trabalhistas do clube, referentes à prática de futebol em competições profissionais, enquanto que seu parágrafo único define que compõem essas obrigações aquelas referentes ao trabalho de atletas, membros da comissão técnica e funcionários cuja atividade principal seja vinculada diretamente ao departamento de futebol.

O parágrafo único, portanto, exige uma vinculação direta desses profissionais ao departamento de futebol, o que afastaria a reponsabilidade sobre empregados de outros departamentos, como por exemplo quanto às obrigações trabalhistas do funcionário de setor financeiro do clube transferido para a nova companhia.

Ainda se utilizando dos exemplos hipotéticos acima como suporte para a análise, também surgem dúvidas quanto à responsabilidade da sociedade anônima quanto às dívidas trabalhistas contraídas pelo clube em relação ao massagista que trata de atletas de diversas modalidades. Isso porque o parágrafo único do artigo 9º exige para tanto que esse trabalhador se dedique ao futebol como atividade principal. Nesse sentido, não estariam contemplados os profissionais que tem sua atividade diluída em diversas modalidades.

A questão central parece estar em definir se o referido parágrafo único estabelece hipóteses taxativas ou exemplificativas de responsabilidade pelas dívidas trabalhistas. Acrescenta-se, ainda, que o artigo 2º, § 2º, da Lei, exige a transferência obrigatória das dividas trabalhistas à sociedade anônima quando vinculadas à atividade de futebol.

A dificuldade interpretativa levantada exige o auxílio das técnicas hermenêuticas disponíveis. Nos parece que a criação de SAF a partir de clube previamente existente seja espécie de cisão entre pessoas jurídicas, a ser regulada, por analogia, a partir da lógica da sucessão de empresas, ainda que o clube instituído sob a forma de associação civil não configure propriamente uma empresa.

Havendo a transferência de empregado do clube original para a SAF, o artigo 9º da Lei 14.193/21 exige sua interpretação conjunta com o artigo 448-A da CLT, segundo o qual as obrigações trabalhistas, inclusive as contraídas à época em que os empregados trabalhavam para a empresa sucedida, são de responsabilidade do sucessor.

Assim, a análise sistemática do ordenamento jurídico nos leva a concluir que a Lei 14.193/21 exige obrigatoriamente que os contratos de trabalho do clube originário vinculados à atividade futebol sejam transferidos à SAF. Nesses casos a sociedade anônima será responsável por tais obrigações, ainda que anteriores à sua constituição.

Além disso, a SAF, de forma facultativa, poderá incorporar outros empregados não vinculados à atividade de futebol, hipótese na qual também será responsável pelas obrigações anteriores, porém, agora com fundamento no artigo 448-A da CLT.

Resta, ainda, a dúvida quanto aos empregados que não se dedicam exclusivamente à atividade futebol, mas cujo trabalho repercute direta ou indiretamente nela. Notamos pelo exame acima que uma vez ocorrida a transferência de funcionário, o fato dele se dedicar ou não à atividade futebol é indiferente para a responsabilização da SAF, pois em qualquer dessas hipóteses ela ocorrerá.

A diferença está na obrigatoriedade ou não de a sociedade anônima incorporar o trabalhador em seu quadro de empregados. Nesse sentido, entendemos que a exigência do artigo 2º, § 2º, I, da Lei nº 14.193/21, refere-se somente aos profissionais que se dedicam exclusivamente ou de forma evidentemente preponderante à atividade de futebol.

A SAF, embora possua diversas semelhanças com as demais sociedades anônimas, tem regras específicas, cuja finalidade é fomentar essa espécie de companhia dedicada unicamente à atividade de futebol. Ressalta-se que o legislador não optou por incentivar a sociedade anônima para a atividade de outras modalidades esportivas. A obrigatoriedade de transferência dos contratos de trabalho, portanto, somente se justifica a partir da intenção do legislador em fomentar a atividade de futebol. Por tal razão, profissionais que têm sua atividade diluída entre diversas modalidades estariam excluídos da obrigatoriedade de transferência do contrato de trabalho.

Em síntese, entendemos que a SAF será responsável pelas dívidas pretéritas referentes a qualquer empregado transferido do clube originário para ela. Ademais, essa transferência somente será obrigatória em relação aos empregados que no clube originário se dedicavam com exclusividade ou de forma evidentemente preponderante à atividade de futebol.

Cabe, ainda, analisar a responsabilidade da SAF sobre os profissionais que se dedicam a diversas modalidades, entre elas a atividade de futebol, e que não foram transferidos à nova companhia. O artigo 9º da Lei 14.193/21 prevê a responsabilidade da SAF sobre as obrigações do clube que possuam relação com o objeto social da sociedade anônima. Nesse sentido, entendemos que o profissional do clube que tenha contribuído de alguma forma para a atividade de futebol, ainda que não exclusivamente, terá seu crédito garantido também pela SAF, sem prejuízo da responsabilidade do clube, mesmo que não ocorra sua transferência para a sociedade anônima.

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Dr. Marcelo Mascaro

Advogado do Trabalho, CTO

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