
Considerações gerais sobre o bem de família
O Direito, como ordem regulatória das relações sociais, possui entre suas finalidades garantir a cada pessoa o que lhe é devido de acordo com as normas socialmente estabelecidas e aceitas. Em uma sociedade de troca, onde grande parte dos interesses são satisfeitos mediante a transferência de bens ou serviços, seja pelo uso de moeda ou não, o Direito cumpre o papel fundamental de assegurar o mínimo de previsibilidade à relação entre credor e devedor.
Assim, não fosse a instituição de mecanismos jurídicos capazes de garantir o crédito de qualquer credor, não apenas a segurança jurídica das relações de troca estaria ameaçada, mas a própria segurança das relações sociais, de uma sociedade complexa baseada nessa forma de interação, também estaria.
Tal é a importância de se garantir a satisfação do crédito que em sistemas jurídicos de outras épocas a dívida poderia ser satisfeita com o corpo do devedor. No Direito romano antigo, por exemplo, a legis actio per manusiniectionem autorizava que o credor vendesse o devedor inadimplente como escravo ou que o matasse, podendo ainda ocorrer a repartição das partes de seu corpo no caso de múltiplos credores.
Ainda em Roma Antiga essa previsão foi suprimida e o devedor passou a arcar unicamente com seu patrimônio para satisfazer a dívida. Evidencia-se a necessidade de haver certa proporcionalidade entre o direito do credor em ter seu crédito satisfeito e o sacrifício que isso causará ao devedor.
Por isso, mostra-se razoável que dívidas patrimoniais sejam garantidas somente com bens da mesma natureza, ou seja, também patrimoniais.
Contudo, ainda assim, a supressão do patrimônio de uma pessoa pode lhe provocar consequências não patrimoniais. Aquele que tem todos seus bens retirados de si tem removido de sua esfera a possiblidade de satisfação das suas necessidades básicas, traduzidas em direitos fundamentais, como alimentação, moradia, saúde, entre muitas outras.
Dessa forma, a supressão radical do patrimônio de qualquer pessoa significa a violação à sua condição de ser humano e de sua dignidade, o que mais uma vez se mostra uma medida desproporcional para a satisfação de uma dívida.
Nesse sentido, surge o instituto do bem de família, com vistas a garantir ao devedor um mínimo patrimonial sem o qual ele está em situação de risco de marginalização social. Assim, a Lei nº 8.009/1990 prevê a impenhorabilidade do bem de família nos seguintes temos:
Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.
Nos termos acima, a proteção contra a penhora recai sobre o imóvel de propriedade do casal ou entidade familiar onde eles residem e sobre os móveis que guarnecem a residência, havendo exclusão expressa, pelo artigo 2º da lei, dos veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos. Ainda sobre os móveis considerados bem de família, também é assegurada a impenhorabilidade dos bens do locatário, não sendo, portanto, a propriedade do bem imóvel residencial requisito indispensável para a caracterização do bem de família móvel.
No tocante ao imóvel, há de ser aquele utilizado pela família como moradia permanente e nos termos do artigo 5º, parágrafo único, “na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis e na forma do art. 70 do Código Civil”.
O dispositivo faz referência ao antigo artigo 70 do Código Civil de 1916 revogado pelo atual. O bem de família no Código de 2002 vem regulado pelos artigos 1711 a 1722, sendo que os artigos 1711 e 1712 permitem, mediante escritura pública ou testamento, a afetação como bem de família de parte do patrimônio, destinado a domicílio familiar, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição.
Dessa forma, da análise conjunta da Lei nº 8.009/1990 e do Código Civil tem-se que havendo mais de um imóvel destinado à moradia da família, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, exceto se existente escritura pública ou testamento determinando outro imóvel usado como domicílio como bem de família e desde que ele não supere um terço do patrimônio líquido familiar.
Importante destacar, também, que embora o dispositivo legal faça referência à figura do casal ou entidade familiar como beneficiário do bem de família, a jurisprudência se consolidou para estender a incidência do instituto a pessoas solteiras, separadas e viúvas, conforme o teor da Súmula nº 364 do STJ, que entende que “O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas”.
Outra questão relevante ao tema diz respeito aos bens móveis abraçados pelo instituto do bem de família. Em princípio a lei protege aqueles que guarnecem a residência com exceção dos veículos de transporte, as obras de arte e os adornos suntuosos. Nesse sentido, costuma ser considerado bens móveis de família pela jurisprudência não apenas utensílios indispensáveis à subsistência familiar, como fogão, geladeira, mesa, cadeiras, sofá, etc, como todos os bens que são amplamente acessíveis e se tornaram bens de consumo de massa, de modo a assegurar um mínimo de conforto e comodidade, como são os casos de televisores, microondas, aparelhos de som, computadores, etc. Nesse sentido seguem as seguintes decisões de Turmas do TRT da 2ª Região:
“Referida lei visa proteger o imóvel utilizado como residência da entidade familiar, bem como os móveis que o guarnecem, desde que necessários à sobrevivência da família. Logo, in casu, a despeito do inconformismo do agravante, extrai-se da certidão do oficial de justiça que o benefício legal atinge todos os bens móveis ali retratados, mesa com cadeiras, jogos de sofá, rack, televisões, computador, cama, geladeira e microondas, porquanto bens imprescindíveis à garantia do convívio familiar. Nas exatas palavras do oficial de justiça, tratam-se de “bens comuns de uma residência””. (TRT da 2ª Região; Processo: 0002354-31.2015.5.02.0021; Data: 22-06-2021; Órgão Julgador: 3ª Turma – Cadeira 4 – 3ª Turma; Relator(a): MERCIA TOMAZINHO).
“Desse modo, encontram-se protegidos pela impenhorabilidade os bens móveis guarnecedores da residência indispensáveis às necessidades básicas do devedor e de sua família, neles se incluindo todos os bens comuns de uso diário da família, tais como: televisão, geladeira, sofá, dvd, máquina de lavar roupa, aparelho de som, ar condicionado, forno microondas, camas e etc, excluindo-se dessa impenhorabilidade, os veículos de transporte, os adornos suntuosos e as obras de arte, conforme art. 2º da Lei 8.009/90”. (TRT da 2ª Região; Processo: 0000923-77.2010.5.02.0492; Data: 03-07-2020; Órgão Julgador: 9ª Turma – Cadeira 5 – 9ª Turma; Relator(a): BIANCA BASTOS).
Tratando-se, porém, de bens que, embora não sejam considerados suntuosos estão presentes na residência do devedor em quantidade além da necessária para manter o mínimo de comodidade conforme os padrões médios, tem-se, por vezes, entendido pela possiblidade de sua penhora por não estar contemplado pela proteção oferecida aos bens de família. Nesses casos, a quantidade dos bens de mesma finalidade em conjunto com o padrão elevado deles pode autorizar a penhora. Nesse sentido, destacamos decisão que considerou válida a penhora de quatro televisores em residência onde foram encontrados cinco desses aparelhos, sendo todos de padrão acima da média. Vejamos:
“Na certidão expedida pelo oficial de justiça, em 12/11/2019, foram encontrados 5 aparelhos de televisão, 1 chaise redonda e uma mesa de vidro quadrada, bens avaliados em R$ 16.400,00, para pagamento do crédito exequendo, no valor de R$ 15.210,00, e a penhora recaiu apenas sobre 4 desses televisores, não causando prejuízo às necessidades comuns de um médio padrão de vida.
Frise-se que se tratam de televisores de grande porte que, pela avaliação do oficial de justiça, poderiam satisfazer o crédito trabalhista do exequente e não prejudicaria o funcionamento da residência do devedor, posto que lá ainda permanecerá mais um televisor”. (TRT da 2ª Região; Processo: 0000448-24.2010.5.02.0492; Data: 29-04-2021; Órgão Julgador: 17ª Turma – Cadeira 3 – 17ª Turma; Relator(a): CARLOS ROBERTO HUSEK).
De forma oposta, a decisão seguinte caracteriza como bem de família dois televisores pertencentes a núcleo familiar composto por três pessoas e cujo valor não é elevado. Vejamos:
“E assim constou da Certidão cumprida pelo oficial de justiça (fls. 383):
“No interior do apartamento, pude constatar que se trata de uma residência bastante simples, onde o sr. Celio reside com a esposa e a filha menor. Nos cômodos do imóvel, sejam estes, dois quartos, sala, cozinha e banheiro, encontrei os bens comuns de uma residência, como móveis e eletrodomésticos usados, são estes: uma mesa com quatro cadeiras; um jogo de sofá de dois e três lugares; um rack; duas televisões; um computador de mesa; cama; geladeira; fogão microondas.
(…)
Logo, in casu, a despeito do inconformismo do agravante, extrai-se da certidão do oficial de justiça que o benefício legal atinge todos os bens móveis ali retratados, mesa com cadeiras, jogos de sofá, rack, televisões, computador, cama, geladeira e microondas, porquanto bens imprescindíveis à garantia do convívio familiar. Nas exatas palavras do oficial de justiça, tratam-se de “bens comuns de uma residência”.”(TRT da 2ª Região; Processo: 0002354-31.2015.5.02.0021; Data: 22-06-2021; Órgão Julgador: 3ª Turma – Cadeira 4 – 3ª Turma; Relator(a): MERCIA TOMAZINHO)
Ainda quanto aos bens móveis de família, também encontramos, embora de forma menos expressiva, decisões que entendem pela possibilidade da penhora sobre qualquer bem que não seja indispensável para a subsistência do devedor. Nesses casos estariam contemplados pelo instituto do bem de família bens como geladeira e fogão, mas não os televisores e aparelhos de som, como pode ser observado na decisão abaixo:
“Mesmo em se tratando de imóvel locado, a impenhorabilidade aplica-se aos bens móveis quitados que guarneçam a residência e que sejam de propriedade do locatário, tais como geladeira, fogão etc. (art. 2º, parágrafo único).
A penhora é possível sobre aparelho de som, televisor, videocassete, que não estão ligados à sobrevivência e bem-estar da família.” (TRT da 2ª Região; Processo: 0264600-27.2008.5.02.0053; Data: 18-10-2021; Órgão Julgador: 14ª Turma – Cadeira 1 – 14ª Turma; Relator(a): FRANCISCO FERREIRA JORGE NETO)
Observa-se, assim, a preocupação do ordenamento em garantir o crédito do credor, porém, sem que isso resulte em violação à dignidade do devedor. Não obstante, a própria Lei nº 8.009/1990 prevê exceções à regra da impenhorabilidade do bem de família.
São elas as hipóteses em que a execução é movida: 1) pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato; 2) pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida; 3) IV – para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar; 4) para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; 5) por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens e 6) por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
Nota-se que a maior parte das exceções acima citadas se relaciona com alguma dívida atrelada ao próprio imóvel a ser penhorado. Nesses casos, o legislador em seu juízo de ponderação optou pelo direito de propriedade do credor em detrimento sobretudo do direito à moradia do devedor. O mesmo se diz quanto ao imóvel oferecido como fiança em contrato de locação. Essa última hipótese, inclusive, teve sua constitucionalidade questionada no STF mediante o Tema 295 da Repercussão Geral (RE 612.360-RG/SP), tendo sido declarada a constitucionalidade do dispositivo.
Não obstante, uma vez que a referida decisão entendeu pela possiblidade da penhora de bem de família oferecido como fiança em contrato de locação em geral, recentemente passou-se a questionar se a exceção também se aplica na hipótese de contrato de locação comercial, estando a questão pendente de julgamento pelo plenário do STF em sede do RE 605.709.
De natureza distinta é a exceção quanto ao credor de pensão alimentícia. Nesse caso, o direito do credor possui natureza alimentar e seu inadimplemento pode afetar sua subsistência e dignidade diretamente. Assim, o legislador optou por privilegiar a natureza alimentar do direito do credor. O mesmo não se deu, porém, em relação a outros créditos de natureza alimentar, como aqueles decorrentes de salário não pago pelo empregador. Esses créditos, em que pese sua natureza alimentar, não foram equiparados àqueles decorrentes de pensão alimentícia e nem obtiveram o mesmo tratamento privilegiados de outros de natureza estritamente patrimonial.
Observa-se, ainda, que o artigo 3º da Lei 8.009/1990, em sua redação original, previa como exceção à impenhorabilidade do bem de família a execução movida em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias. Contudo, o disposto foi revogado pela Lei Complementar nº 150 de 2015.
Por fim, concluímos pela necessidade de se preservar a dignidade do devedor diante de uma dívida meramente patrimonial, justificando-se, assim, o instituto do bem de família. Apontamos, contudo, certa incoerência no rol de exceções previstos na Lei 8.009/1990 ao privilegiar certos créditos de natureza patrimonial enquanto resta silente quanto a outros créditos de natureza alimentar.