
O papel das presunções no ônus da prova no Processo do Trabalho
Por Marcelo Mascaro Nascimento
A lide processual em sua grande maioria dos casos se desenvolve envolta a narrativas distintas dos fatos. Não raro no processo do trabalho reclamante e reclamada narram versões incompatíveis ou opostas sobre os fatos em debate. São verbas pleiteadas pelo autor da ação, que o empregador afirma terem sido pagas. São horas extras afirmadas pelo reclamante e negadas pelo réu. A própria prestação do serviço na forma de vínculo de emprego, por vezes, é motivo de divergência. Enfim, os exemplos da prática forense são inúmeros.
Daí surge a necessidade de diante da controversa dos fatos serem estabelecidas regras sobre o ônus da prova, que irão definir a quem cabe provar o fato alegado. Originalmente, a CLT em seu artigo 818 previa que a parte que alega o fato deveria prová-lo. Em que pese o regramento específico do processo do trabalho e a ausência de lacuna quanto ao ônus da prova no processo trabalhista, a simplicidade do dispositivo levou a que a jurisprudência adotasse o regramento do processo civil, qual seja, inicialmente a previsão contida no artigo 333 do Código de Processo Civil de 1973 e, após, no artigo 373 do Código de Processo Civil de 2015, ambas no sentido de atribuir o ônus da prova ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito e ao réu quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
A reforma trabalhista de 2017 promovida pela Lei 13.467/2017, por sua vez, alterou a redação do artigo 818 da CLT para incorporar a norma prevista no processo civil e passou a dispor que é ônus do reclamante provar o fato constitutivo de seu direito e do reclamado o impeditivo, extintivo ou modificativo do direito do reclamante.
A regra, portanto, é a de que o reclamante deve provar suas alegações contidas na peça inicial, enquanto que ao reclamado cabe a prova quando ele não negar a afirmação do reclamante, mas trouxer um fato novo capaz de afastar a pretensão do autor. Esse novo fato poderá ser considerado impeditivo, extintivo ou modificativo do direito do reclamante.
Embora essa seja a regra geral, o artigo 818 da CLT também autoriza a distribuição dinâmica do ônus da prova, de modo que ela seja repartida de outra forma pelo magistrado quando verificada certas condições. Neste exame, contudo, não pretendemos adentrar nesse instituto jurídico, mas somente identificar o papel de outro elemento que interfere na distribuição do ônus da prova e não previsto expressamente no artigo 818 da CLT, qual seja, a presunção de fatos.
Conforme ensinamento de Carlos Henrique Bezerra Leite1, fatos impeditivos são aqueles que provocam a ineficácia dos fatos constitutivos alegados pelo autor. Já os extintivos são os que eliminam, extinguem ou tornam sem valor a obrigação assumida pelo réu, por não ser ela mais exigível. E finalmente modificativos são os fatos que implicam alteração dos fatos constitutivos alegados pelo autor.
O autor oferece como exemplos de fato impeditivo as hipóteses em que o reclamante pleiteia pagamento de aviso prévio em razão de dispensa sem justa causa e o reclamado alega que ela se deu por justa causa ou, ainda, quando o reclamante pede equiparação salarial, indicando o paradigma, e o reclamado alega a existência de quadro de carreira.
Seriam exemplos de fatos modificativos a alegação do reclamado de que a prestação de serviço se deu não sob a forma de relação de emprego, mas de outra, como uma relação autônoma ou nos casos em que é pleiteado o pagamento de horas extras para bancário, porém, a defesa alega que reclamante passou a ocupar cargo de gerente.
Ainda, seriam extintivas hipóteses como as que o reclamante requer pagamento de saldo de salário e o reclamado alega que já o efetuou ou, também, alegações como a renúncia, a prescrição e a decadência.
Encontramos, ademais, diversos exemplos na jurisprudência da Justiça do Trabalho. A começar pela prova da relação de emprego. Conforme o entendimento pacífico da Justiça do Trabalho cabe ao reclamante provar a prestação do serviço. Se provada ou se não negada pelo reclamado, presume-se que a prestação de serviço se deu sob a forma de uma relação de emprego. Assim, a alegação do reclamado de relação jurídica diversa atrai para ele o ônus da prova por se tratar de fato impeditivo do direito do autor.2
Nesse simples exemplo já se evidenciam duas dificuldades na aplicação da regra sobre o ônus da prova. A primeira é a existência de certa dificuldade quanto à classificação de um fato alegado como impeditivo, modificativo ou extintivo. Enquanto o ilustre doutrinador citado entende ser um fato modificativo a alegação do réu de prestação de serviço sob outra forma que não a de emprego, parte expressiva da jurisprudência o considerada impeditivo.
Outra dificuldade exposta pelo exemplo acima é o papel das presunções nas regras sobre o ônus da prova. A literalidade da interpretação da norma segundo a qual cabe ao autor provar o fato constitutivo de seu direito, poderia levar à conclusão de que se ele alega haver uma relação de emprego deveria demonstrar além da prestação do serviço, todos os elementos caracterizadores dessa relação, ou seja, a pessoalidade, habitualidade, onerosidade e subordinação.
Contudo, a construção jurisprudencial, a partir da noção de que a maioria das prestações de serviço se dão sob a forma de uma relação de emprego, caminhou para o entendimento de que a prestação de serviço se presume que ocorra mediante a relação de emprego. Nesse sentido, a presunção criada pela jurisprudência permite que o reclamante prove somente uma parcela de suas alegações, ou seja, apenas a prestação do serviço.
Outro exemplo de interesse está na Súmula nº 212 do TST, segunda a qual:
DESPEDIMENTO. ÔNUS DA PROVA (mantida) – Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003
O ônus de provar o término do contrato de trabalho, quando negados a prestação de serviço e o despedimento, é do empregador, pois o princípio da continuidade da relação de emprego constitui presunção favorável ao empregado.
Nesse caso, também há presunção capaz de definir o ônus da prova, porém, agora fundamentada em um dos princípios do Direito do Trabalho. A súmula expressa o entendimento de que uma vez provado pelo empregado a prestação do serviço, não só se presume a relação de emprego como sua continuidade. Assim, diante do princípio da continuidade, cabe ao empregador provar a término do contrato de trabalho. Uma situação imaginável de aplicação da súmula seria o empregado que pleiteia verbas rescisórias por dispensa sem justa causa e a alegação do empregador de que houve abandono de emprego.
As verbas rescisórias decorrem da dispensa sem justa causa. Em princípio, esse fato por ser alegado pelo autor e constitutivo de seu direito demandaria que o ônus da prova recaísse sob ele, caso o empregador negasse o fato levantado pelo reclamante. Contudo, se o empregador nega a dispensa sem justa causa gera a presunção da continuidade da relação de emprego e, portanto, deve provar o término sob outra forma.
Também a aplicação do ônus da prova quanto à jornada de trabalho é interpretada a partir de uma presunção. Nos termos da Súmula nº 338 do TST:
JORNADA DE TRABALHO. REGISTRO. ÔNUS DA PROVA
I – É ônus do empregador que conta com mais de 10 (dez) empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT. A não-apresentação injustificada dos controles de freqüência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário.
II – A presunção de veracidade da jornada de trabalho, ainda que prevista em instrumento normativo, pode ser elidida por prova em contrário.
III – Os cartões de ponto que demonstram horários de entrada e saída uniformes são inválidos como meio de prova, invertendo-se o ônus da prova, relativo às horas extras, que passa a ser do empregador, prevalecendo a jornada da inicial se dele não se desincumbir.
Observamos, porém, que a súmula merece pequena revisão em decorrência de a atual redação do artigo 74, § 2º, da CLT, exigir o registro de jornada somente para os empregadores com mais de vinte empregados.
Não obstante, a súmula estabelece que a obrigação legal de o empregador manter o registro de jornada de seus empregados atrai para ele o ônus da prova. Portanto, se o reclamante alega ter prestado horas extras não pagas, apesar de esse fato ser constitutivo de seu direito cabe ao empregador com mais de vinte empregados demonstrar que não houve trabalho em sobrejornada, uma vez que é obrigação do empregador controlar a jornada de trabalho de seus empregados.
Assim, observa-se que mesmo diante da regra de que cabe ao autor provar os fatos constitutivos de seu direito, o reconhecimento jurisprudencial de determinadas presunções nas relações de emprego pode flexibilizar a norma. Nesse sentido, identificamos presunções com causas de três naturezas distintas. Uma delas são aquelas geradas a partir da vivência prática, como exemplificado pela presunção de que a prestação de serviço se presume sob a forma de relação de emprego. Outra tem origem em princípios do Direito do Trabalho, como ocorre em relação à Súmula nº 212 do TST. Finalmente, a presunção ainda pode ser motivada por uma exigência legal a que o empregador não cumpriu, tal como consta no entendimento da Súmula nº 338 do TST.
Com isso, concluímos que o regramento contido no artigo 818 da CLT ainda que ofereça normas para a distribuição do ônus da prova no processo do trabalho, não é suficiente, pois existe um sistema de presunções não expressos no ordenamento que alteram essas regras em situações específicas.