
Quem são as pessoas com deficiência que fazem jus à reserva de vagas
De acordo com o artigo 1º da Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, de 30 de março de 2007, e incorporada ao ordenamento brasileiro por meio do Decreto nº 6.949 de 25 de agosto de 2009, pessoas com deficiência são “aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”.
Assim, tratam-se de pessoas cujas características físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais, que se manifestam no longo prazo, em razão das barreiras socialmente estabelecidas, encontram-se em desigualdade de condições com as demais pessoas. Cabe destacar que o paradigma estabelecido pela convenção da ONU desloca a titularidade da deficiência para a sociedade, de modo que é a sociedade que impõe barreiras a determinadas pessoas, que as impedem de viver em igualdade de condições com os demais.3
Nesse sentido, a deficiência é também algo socialmente produzido. A construção, por exemplo, de calçadas sem acesso para cadeirantes é uma escolha por um tipo específico de passeio público, entre muitos outros possíveis, que cria barreiras físicas para um grupo de pessoas.
O mesmo se pode dizer sobre o mercado de trabalho. Se condições desreguladas permitem o menor acesso de pessoas com deficiência ao mercado de trabalho, a manutenção dessa desregulamentação é uma opção pela continuidade do tratamento desigual.
Por certo, a forma de organização econômica de nossa sociedade conduz a um modelo de competitividade no qual pessoas com deficiência são excluídas. Do mesmo modo que nosso modelo econômico é resultado de uma construção histórica e não decorre de nenhum estado de natureza, as barreiras impostas ao ingresso dessas pessoas ao mercado de trabalho também o são.
Dessa forma, a discriminação sofrida pelas pessoas com deficiência no mercado de trabalho não decorre apenas de suas características próprias, mas principalmente de uma organização social específica que faz com que essas características sejam discriminadas.
Dado que dentro de nossa ordem econômica, em uma situação de livre mercado, a história demonstrou que pessoas com deficiência sofrem discriminação no mercado de trabalho, a regulação jurídica dessa situação surge como uma forma de mitigar as barreiras socialmente produzidas.
É sob esse panorama que surge a instituição de cotas para pessoas com deficiência ingressarem no mercado de trabalho.
No Brasil, o artigo 93 da Lei 8.213/91 prevê que a empresa com 100 ou mais empregados deverá preencher de 2% a 5% dos seus cargos com beneficiários reabilitados da Previdência Social ou pessoas com deficiência na seguinte proporção: I) 2% para as empresas com 100 até 200 empregados; II) 3% para as empresas com 201 até 500 empregados; III) 4% para as empresas com 501 até 1000 empregados e IV) 5% para as empresas com mais de 1000 empregados.
As cotas, portanto, são reservadas tanto para pessoas com deficiência como aos reabilitados pela Previdência Social.
Os Decretos 3.298/1999 e 5.296/04 estabelecem quem são consideradas pessoas com deficiência para fins do cumprimento das referidas cotas. Inicialmente, o regulamento define deficiência como “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano”. Ela ainda pode ser de cinco espécies: física, auditiva, visual, mental ou múltipla.
A deficiência física corresponde à “alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções”.
Dessa forma, a deficiência física equivale a alterações em segmento do corpo humano, ou seja, em cabeça, pescoço, tronco, braço, antebraço, mão, coxa, perna ou pé, que comprometa a função física e provoque dificuldade para o desempenho de funções, excluindo-se, portanto, as deformidades estéticas.
Assim, incluem-se na categoria de deficiência física, por exemplo, i) a paralisação das pernas (paraplegia) ou a redução de seus movimentos (paraparesia), ii) a paralisação (monoplegia) ou redução dos movimentos (monoparesia) de um único membro, seja inferior ou superior, iii) a paralisação (triplegia) ou redução de movimentos (triparesia) de três membros, iv) a paralisação (tetraplegia) ou redução dos movimentos (tetraparesia) dos braços, das pernas e do tronco ou v) a paralisação (hemiplegia) ou redução dos movimentos (hemiparesia) de um dos lados do corpo.
Também é considerada deficiência física a ostomia, definida pela exteriorização de uma das vias excretoras (intestinal ou urinária) por meio de uma abertura na pele do abdome para saída de conteúdo intestinal ou urina.
Já em relação à amputação ou ausência de membro, algumas hipóteses podem gerar certa discussão se a alteração do segmento do corpo resulta ou não em dificuldade para o desempenho de funções. Nesse sentido, o Anexo III do Decreto 3048/99, estabelece situações que dão direito ao recebimento de auxílio-acidente pelo trabalhador acidentado e que podem ser utilizadas como referência para a caracterização de deficiência física.
São exemplos relativos aos segmentos das mãos e dos pés: a) perda de segmento ao nível ou acima do carpo; b) perda de segmento do primeiro quirodáctilo, desde que atingida a falange proximal; c) perda de segmentos de dois quirodáctilos, desde que atingida a falange proximal em pelo menos um deles; d) perda de segmento do segundo quirodáctilo, desde que atingida a falange proximal; e) perda de segmento de três ou mais falanges, de três ou mais quirodáctilos; f) perda de segmento ao nível ou acima do tarso; g) perda de segmento do primeiro pododáctilo, desde que atingida a falange proximal; h) perda de segmento de dois pododáctilos, desde que atingida a falange proximal em ambos e i) perda de segmento de três ou mais falanges, de três ou mais pododáctilos.
Assim, caracterizam deficiência física a perda do dedo polegar ou do indicador, não sendo suficiente a amputação somente da falange mais distante da mão no primeiro caso ou das duas mais distantes no segundo. Já em relação aos demais dedos da mão apenas haverá deficiência física se a amputação se der de forma combinada em mais de um dedo e de acordo com as falanges atingidas. Por exemplo, enquadra-se como deficiência física a perda do dedo mínimo por inteiro em conjunto com a perda de falange de qualquer outro dedo ou, ainda, a amputação da falange mais distante da mão de três dedos distintos.
Os Decretos 3.298/99 e 5.296/04 ainda classificam como deficiência física a paralisia cerebral, o nanismo e a existência de membros com deformidade congênita ou adquirida, desde que haja dificuldade para o desempenho de funções.
Já a deficiência auditiva é definida pela perda bilateral, parcial ou total, de ao menos quarenta e um decibéis, aferida por audiograma nas frequências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz. Dessa forma, o audiograma deverá auferir a capacidade auditiva para cada uma das frequências acima citadas em cada um dos ouvidos. A pessoa somente será considerada deficiente auditiva se para cada um dos ouvidos ela tiver perda de 41 decibéis, na média, para as quatro frequências acima expostas. Ou seja, a perda de 41 decibéis se refere à média das perdas auditivas das quatro frequências.
A pessoa que possui deficiência auditiva, ainda que total, em apenas um dos ouvidos, portanto, não é considerada deficiente, nos termos dos decretos, para os fins das cotas, se em seu outro ouvido não possui ao menos 41 decibéis de perda conforme os critérios expostos. Não obstante, conforme pode ser exemplificado pela decisão abaixo, o TST tem entendido que, com base na finalidade da norma e na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, a perda auditiva unilateral, desde que igual ou superior a 41 decibéis, caracteriza deficiência auditiva. Vejamos:
“RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. INSCRIÇÃO DA CANDIDATA COMO PORTADORA DE NECESSIDADES ESPECIAIS (PNE). DEFICIÊNCIA AUDITIVA UNILATERAL. ENQUADRAMENTO. ARTIGOS 3º E 4º DO DECRETO Nº 3.298/1999. LEI Nº 7.853/89. ART. 37, VIII, DA CF E CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. Prepondera em nosso sistema normativo um modelo voltado a políticas públicas e medidas legais de proteção e correção de distorções que afetam o acesso ao trabalho, como meio de dar concretude aos primados constitucionais de isonomia e não discriminação, além da construção de uma sociedade livre, justa e solidária (arts. 1º, II e III, e 3º, I e IV, 37, VII da Constituição Federal). Ressalte-se que a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da ONU, incorporada formalmente à Constituição brasileira pelo quorum qualificado (art. 5º, §3º, da CF), é instrumento citado como um marco jurídico importante no sentido da construção de um novo paradigma para o conceito de deficiência, passando-se a entender que os impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial ganham significado quando convertidos em experiências pela interação social, o que justifica todo o aparato normativo constitucional e infraconstitucional voltado ao suporte necessário às pessoas que, em face de sua condição, vivenciam a discriminação, a opressão ou a desigualdade pela deficiência. Assim, a diferenciação positiva para pessoas com deficiência é efetivada por meio de diplomas normativos que determinam ações afirmativas de reserva de cargos e empregos públicos para a Administração direta e indireta (Lei 8.112/90), e de postos de trabalho no setor privado (Lei 8.213/91). Nesse sentido, a redação dada pelo Decreto 5.296/2004 ao art. 4º do Decreto n. 3.298/99, no sentido de limitar a categoria de deficiente auditivo apenas para quem possui surdez bilateral restringiu o alcance objetivado por todo o aparato jurídico constitucional de tutela às pessoas com deficiência. Assim, a perda de audição, ainda que unilateral ou parcial, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida na forma do art. 4º, II, do Decreto nº 3.298/99, configura a condição de portador de necessidades especiais (PNE), como a que se verifica no caso em análise. Precedentes. Recurso ordinário conhecido e provido.” (RO-1453-07.2012.5.03.0000, Rel. Min. Maurício Godinho Delgado, Órgão Especial, DEJT, 14/2/2014)
A deficiência visual, por sua vez, é definida como a “cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60o; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores”
Assim, nos termos dos decretos, a deficiência visual é caracterizada pela acuidade visual do melhor olho, após a melhor correção óptica, que não deverá ser superior a 0,3 ou por um campo visual igual ou inferior a 60 graus na somatória dos olhos. Nesse sentido, a cegueira de apenas um olho não seria considerada deficiência visual para fins das cotas se o outro olho possuir acuidade visual superior a 0,3. Apesar disso, a Lei 14.126 de 22 de março de 2021 em seu artigo 1º estabeleceu que “fica a visão monocular classificada como deficiência sensorial, do tipo visual, para todos os efeitos legais”. Desse modo, a cegueira de um único olho passou a caracterizar deficiência visual para fins de cotas, independentemente da acuidade visual do outro olho.
Ainda, a deficiência mental é definida como o “funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas”, como a) comunicação; b) cuidado pessoal; c) habilidades sociais; d) utilização da comunidade; d) utilização dos recursos da comunidade; e) saúde e segurança; f) habilidades acadêmicas; g) lazer; e h) trabalho.
Embora os decretos se refiram a doença mental, eles utilizam um critério de natureza intelectual, ao dizer “funcionamento intelectual significativamente inferior à média”, e outro psicossocial ao elencar diversas habilidades adaptativas.
Finalmente, os decretos ainda preveem a deficiência múltipla que é associação de duas ou mais deficiências.
Descritas as formas de deficiências reconhecidas expressamente pela legislação pátria como capazes de originar o direito à reserva de vagas de trabalho, resta mencionar a possibilidade de a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU permitir interpretação que amplie esse rol.
É o que pode ocorrer, por exemplo, em relação às deformidades estéticas. Embora o Decreto 3298/99 exclua as alterações estéticas do conceito de deficiência física para fins de cotas, uma interpretação a partir da mencionada Convenção pode levar à conclusão oposta.
Nesse sentido, a avaliação poderia ser realizada conforme a visão biopsicossocial da Convenção, de modo que o estigma que essas pessoas sofrem em decorrência de sua deformidade constitui uma barreira atitudinal, que se expressa mediante exclusão do trabalho e da vida social e, por conseguinte, justificaria a reserva de mercado.