artigos - 13/04/2023

Um modelo provocativo para regular o trabalho em plataformas

Por: Hélio Zylberstajn

O trabalho em plataformas apareceu no início deste século, se espalhou rapidamente por todos os cantos, mas os países ainda não encontraram um modelo justo e eficiente para regulamentá-lo. Simplificando o debate em torno da matéria, pode-se dizer que há basicamente duas posições opostas. Embora opostas, mas têm um detalhe em comum: seus respectivos defensores concordam que há existe uma relação entre o trabalhador e a plataforma. A divergência está no entendimento sobre a natureza desta relação. Para um grupo, trata-se de relação de subordinação e, portanto, existiria um vínculo de emprego. A decorrência é direta: sendo subordinado, o trabalhador estaria coberto pela CLT, com todos os direitos decorrentes, e a empresa teria que cumprir as correspondentes obrigações legais e tributárias. O outro lado entende que o trabalhador de plataformas exerce sua atividade com autonomia, sem subordinação, e, assim sendo, não estaria coberto pela CLT e a relação entre os dois não seria uma relação de emprego. Uma abordagem acredita que existe vínculo de emprego, a outra que não existe tal vínculo.

O parágrafo acima apresentou o debate de forma exageradamente simplificada, mas suficiente para mostrar o que está em jogo aqui. Evidentemente, não se trata de uma discussão semântica, pois o tratamento legal da relação de trabalho de plataforma tem implicações sociais e econômicas importantes. A Figura abaixo apresenta as quatro combinações possíveis do tratamento legal vis a vis a natureza da relação de trabalho. Se a legislação tratar a relação de forma equivocada, haverá redução na eficiência econômica (célula A) ou no bem-estar do trabalhador (célula D).

Tratamento legal e natureza real do trabalho em plataformaTratamento legal
Subordinado, com vínculo de empregoAutônomo,  sem vínculo de emprego
Natureza realAutônomoA   Tratamento legal inadequado, perda de eficiênciaB   Tratamento legal adequado 
SubordinadoC   Tratamento legal adequadoD   Tratamento legal inadequado, perda de bem-estar 

Embora a discussão sobre a natureza da relação de trabalho na plataforma envolva diversas nuances e variações, as duas posições polarizadas a tem conduzida basicamente sob o ponto de vista legal e no âmbito do Direito do Trabalho. Não quero menosprezar o aspecto legal, pelo contrário, considero-o muito relevante. Mas acredito que a predominância de apenas uma disciplina para estudar a questão pode empobrecer a discussão. Uma perspectiva diferente, a partir de outra disciplina, talvez possa enriquecê-la e apontar soluções mais criativas e mais adequadas para a regulamentação da atividade das plataformas. Este é exatamente o propósito deste texto: oferecer para a questão do trabalho na plataforma uma contribuição a partir da Teoria Econômica, ou, mais precisamente, da Teoria Microeconômica.

Para começar, vou resgatar as contribuições de dois gigantes, Ronald Coase e Gary Becker.

Custos de transação e dicotomia do conhecimento

Ronald Coase publicou, em 1937, um pequeno artigo de 17 páginas, que lhe valeu, 54 anos mais tarde, em 1991, o Premio Nobel[i]. Coase tinha uma pergunta: porque existem as firmas (os economistas costumam designar a empresa por “firma”)? Estava particularmente interessado nas firmas gigantes, as corporações e os conglomerados. Sua pergunta pode parecer irrelevante, mas, na verdade, tinha um sentido muito profundo, pois a existência da firma era, aparentemente, algo que contradizia a teoria econômica. Os manuais diziam (e dizem, até hoje) que o mercado é o arranjo mais eficiente para alocar recursos, produzir bens e distribuir a retribuição do esforço. Porque então, perguntava Coase, o produtor não vai diretamente ao mercado todos os dias, para comprar os meios e os materiais e contratar o trabalho para produzir bens? Porque existe este “filtro”, a firma?

Para responder à sua pergunta, Coase indicou que qualquer transação econômica implica na existência de “custos de transação”. Um empresário tem que se engajar em diversas atividades para se organizar e produzir o bem que deseja oferecer ao mercado: tem que procurar os fornecedores, consultar preços, selecionar a melhor oferta e efetuar a compra. Da mesma forma, tem que procurar colaboradores, selecioná-los, explicar-lhes as tarefas que deverão executar e supervisionar seu trabalho. Tem que coordenar as atividades da produção e organizar a venda e distribuição. Além dos custos de aquisição propriamente ditos, Coase mostrou que há custos de transação envolvidos em qualquer troca econômica. O empreendedor procura reduzir seus custos e a operação da firma é o arranjo mais adequado.

A existência de custos de transação positivos tem uma implicação importante: é preciso internalizar as atividades, pois a coordenação interna é o arranjo mais eficiente, quando comparado à aquisição de bens e materiais no mercado. Como estava interessado nas grandes firmas, as corporações, Coase também se perguntou qual seria então o tamanho ideal da firma. Sua resposta é muito familiar aos economistas: a firma para de internalizar quando o custo (de produção mais o de transação) adicional da internalização for maior que o custo de transação de adquiris no mercado.

Com o c conceito de custo de transação, Coase explicou mostrou porque organizações enormes, verticalizadas, hierarquizadas e burocráticas eram o modelo vencedor no mundo dos negócios. Seus custos internos eram menores do que os custos que teriam se comprassem tudo “fora”. Para ter sucesso, a ordem era trazer tudo para dentro da firma, enquanto a internalização compensasse. Quando internalizar deixasse de ser economicamente interessante, a firma iria para o mercado. Estava explicado o “filtro”, o muro, que separa a firma do mercado.

Gary Becker vem de uma vertente bastante distinta da de Coase. Na verdade, os dois pertencem a correntes econômicas antagônicas. Embora tenham feito suas carreiras na mesma Universidade de Chicago, Coase se identificava com a economia institucional enquanto Becker foi um destacado representante da economia neoclássica. Nos parágrafos seguintes, apresentarei uma das contribuições de Becker e tentarei mostrar que, apesar das diferenças ideológicas e metodológicas, existe uma convergência que aproxima estes dois grandes economistas. Essa proximidade inesperada nos ajuda a entender as transformações do mercado de trabalho das últimas décadas, inclusive a emergência das plataformas.

Becker foi pródigo em contribuições teóricas e em aplicações empíricas. Para o objetivo deste texto, destacarei sua contribuição para a consolidação e o desenvolvimento da teoria do capital humano[ii]. O capital humano pode ser adquirido de diversas maneiras, sendo a mais importante a educação. Outra maneira é o aprendizado adquirido durante a relação de emprego, que Becker denominou “on the job training”, o treinamento em serviço. Este pode ocorrer por meio de programas estruturados e organizados pela empresa, ou em processos informais, nos quais o supervisor e os colegas orientam o novo empregado, transmitindo-lhe seu conhecimento e supervisionando seu desenvolvimento. A grande contribuição de Becker neste ponto foi sua sugestão de que o treinamento em serviço pode transmitir ao treinando dois tipos de conhecimento: geral ou específico.

O conteúdo do conhecimento geral é útil para o trabalho na própria empresa e também em outras empresas, daí decorrendo o qualificativo “geral”. Por outro lado, o conhecimento específico tem aplicação mais restrita, sendo útil apenas na empresa onde é transmitido. Ambos aumentam o capital humano do treinando e aumentam sua produtividade. O conhecimento geral aumenta a produtividade em várias, ou, até mesmo em todas as empresas.  O conhecimento específico aumenta a produtividade apenas quando é utilizado e aplicado na própria empresa, daí decorrendo o qualificativo “especifico”.

A dicotomia geral x específico do conhecimento é muito importante para a relação de emprego, principalmente para sua duração. Em uma empresa em que predomina o conhecimento geral, os empregados são disputados pelo mercado, pois sua qualificação os habilita a trabalhar em muitas empresas. Para retê-los, a empresa tem que pagar salários pelo menos iguais aos de mercado. Mesmo assim, tem dificuldades em mantê-los e recebe frequentes pedidos de desligamento, que produzem altas taxas de rotatividade. Já em uma empresa onde o conhecimento específico é predominante, a duração dos vínculos é maior, porque seus empregados são mais produtivos enquanto trabalharem na própria empresa. Seu capital humano tem valor menor no mercado externo e são menos atraentes para as demais empresas. Por essa razão, a empresa pode pagar salários menores, sem sofrer riscos de perda de capital humano.

Quando a empresa decide investir em seu empregado, oferecendo-lhe um programa treinamento em serviço, assume certo risco. No caso do treinamento em conhecimento geral, o risco é maior, porque o empregado pode ficar pouco tempo o emprego. Por essa razão, o empregado assume o custo do treinamento, de diversas maneiras. A mais comum é receber um salário menor durante o período do treinamento. No caso do treinamento em conhecimento específico, o risco da empresa é menor e ela não precisa transferir o custo total do programa ao treinando, pois é mais provável que ele permaneça no emprego, dando tempo para ocorrer o retorno do investimento da empresa.

A diferença na distribuição do risco e no custeio do programa de treinamento repercute nas atitudes recíprocas do empregado e da empresa. Quando o conhecimento geral predomina, existe um grau pequeno de comprometimento recíproco. Por outro lado, quando o conhecimento específico é predominante, os dois lados compartilham riscos e benefícios do investimento e têm interesse correspondido em manter a relação de emprego por um longo período.

Juntando as peças

O leitor já deve ter percebido para onde Coase e Becker convergem. A firma vencedora de Coase precisa de contratos de longo prazo, inclusive o contrato de trabalho, para reduzir seus custos de transição. Ao mesmo tempo, por ser grande, precisa criar especificidades que unam e identifiquem as suas partes. Não apenas o conhecimento técnico é específico, mas principalmente as relações entre os componentes das equipes têm idiossincrasias que decorrem da especificidade da própria organização, fato sugerido por Williamson e seus colegas[iii].

Outra parte que se encaixa neste conjunto de conceitos é o sindicato e a negociação coletiva e, até mesmo, a regulamentação legal do mercado de trabalho. Estas instituições existem porque a relação firma-empregado sofre de assimetria de poder. O empregado, individualmente, é mais fraco que a empresa. Para estabelecer algum equilíbrio na relação, as sociedades capitalistas foram criando instituições cuja finalidade é reduzir a competição predadora e garantir padrões mínimos de remuneração e de condições de trabalho. Além disso, procuram alcanças proteção para a continuidade da própria relação de emprego, objetivo conhecido como proteção do emprego.

Na medida em que a firma de Coase internaliza e organiza a produção e o conhecimento específico de Becker nela predomine, os objetivos dos sindicatos e da legislação trabalhista não são antagônicos aos seus interesses. Pelo contrário, podem coexistir harmonicamente. Mas, ns empresas mais expostas ao mercado, com relações de emprego menos duradouras, e conhecimento menos específico, têm mais dificuldade de conviver com sistemas de regulamentação do mercado de trabalho.

Juntando as peças aparentemente desconectadas que nossos dois autores ofereceram, foi possível desvendar a lógica das relações de trabalho nas grandes empresas que predominaram no século passado. Dois aspectos merecem destaque antes de fecharmos esta seção. Primeiro, no mundo de Coase e Becker, a relação de trabalho é bilateral, com dois atores, o trabalhador e d a empresa, seu patrão. A natureza bilateral e permanente da relação se traduz no arranjo legal que conhecemos como vínculo de emprego, assentado nas instituições que o protegem. O segundo ponto que emerge destas considerações é que, neste mundo, o sindicato exerce um papel contraditório. De um lado, seu discurso denuncia as mazelas do capitalismo e, muitas vezes, propaga a luta de classes. De outro, é uma instituição que faz parte do sistema, que, legitimamente representa os interesses dos trabalhadores, buscando extrair para seus representados o maior quinhão no “bolo” produzido no sistema capitalista. Na próxima seção tentarei mostrar que estamos diante de um processo novo, que desafia a bilateralidade nas relações de trabalho e, em decorrência o próprio alcance da representação os interesses do trabalho.

Organização horizontal da produção

Nas duas últimas décadas do século passado, observamos dois processos de mudança nas formas de organização da produção. Primeiro, as empresas industriais aperfeiçoaram seus sistemas de gestão e de organização da produção, simplificando processos, racionalizando fluxos de material e de informação, organizando o timing da reposição de estoques de peças e materiais, redefinindo cargos e funções e redesenhando papeis nas linhas de montagem, e assim por diante. Esse enorme movimento de renovação que recebeu diversos nomes, desde toyotismo até produção enxuta, resultou em sistemas organizacionais mais leves e eficientes. O segundo movimento foi a substituição das estruturas verticalizadas por cadeias produtivas horizontais descentralizadas, de dimensões espaciais muito grandes, chegando até a sistemas de fluxos globais fornecimento de peças e serviços. Ambos os movimentos foram viabilizados pelo grande avanço na tecnologia das comunicações, da logística e de automatização, movimentos que continuam até agora.

O avanço nos sistemas de gestão e na tecnologia da produção modificou radicalmente o mundo de Coase e Becker. De um lado, reduziu os custos de coordenação da produção, tornando obsoleto o modelo verticalizado da firma. Hoje, é possível comandar sistemas globais de produção a partir de uma sala, localizada em qualquer ponto do globo terrestre. Não há mais necessidade de trazer tudo para dentro, pois sistemas descentralizados têm custos de transação menores. De outro lado, o desaparecimento da firma verticalizada e o surgimento de cadeias produtivas reduziu a importância do conhecimento específico. As empresas são hoje todas muito parecidas porque nelas predominam os mesmos tipos de conhecimento geral. Competem pelos mesmos trabalhadores em mercados cada vez mais amplos. Nas cadeias produtivas impessoais não existem mais idiossincrasias.

Nas empresas do século passado, os mais antigos transmitiam o conhecimento aos mais novos, porque havia um compromisso reciproco de vínculos longevos.  Os empregados antigos não se sentiam ameaçados pelos mais novos e não tinham receio em ensinar os segredos do trabalho. O investimento no aprendizado do conhecimento específico e o domínio das idiossincrasias do processo produtivo eram a base de um contrato implícito. A empresa o respeitava porque precisava preservar sua reputação junto aos seus colaboradores. Em muitos casos, o sindicato o explicitava em cláusulas negociadas de proteção do emprego. Não é coincidência que hoje um dos temas mais frequentes e relevantes na gestão dos recursos humanos seja a “gestão do conhecimento”. Com a constante renovação dos quadros e sem o compromisso mútuo de permanência, é mesmo mais difícil preservar o conhecimento da empresa.

Coase e Becker nos explicaram muito bem como funcionava o mercado de trabalho no século passado e, surpreendentemente, continuam explicando seu funcionamento neste século. Custo de transação e natureza do conhecimento são conceitos ainda muito úteis para entender o sentido e as consequências das transformações dos nossos dias. Custos de transação reduzidos e predominância de conhecimentos gerais apontam para um novo mercado, com vínculos de emprego mais efêmeros, sem comprometimento recíproco. Por outro lado, a transformação das estruturas verticalizadas em cadeias produtivas horizontais, onde cada elo pode fornecer produtos a diferentes empresas centrais, criando sistemas de produção terceirizada.

Emergência de relações de trabalho multilaterais

As inovações tecnológicas diluíram as fronteiras entre a produção e o consumo a tal ponto que, em muitos casos, o consumidor assume papeis que antes eram exercidos pelos trabalhadores. Há inúmeros exemplos. Um deles é o ensino à distância, no qual o aluno assume o papel do professor em muitas etapas do aprendizado. Outro, mais evidente ainda, é a transformação no processo de aquisição de passagens aéreas. O consumidor compra sua passagem e emite seu bilhete sem nenhuma intervenção de trabalhadores da empresa de transporte aéreo. O exemplo mais dramático é, sem dúvida, o das transações bancárias, que transformaram as agências de bancos em espaços vazios. Os clientes conseguem fazer todas as transações utilizando o terminal eletrônico, o computador ou o aparelho celular. O avassalador crescimento do comércio eletrônico mostra definitivamente que o consumidor é um novo ator que substitui parte das atividades produtivas e comerciais que antes eram feitas pelos trabalhadores. Ele penetrou em numa relação que antes era bilateral, transformando-a em trilateral.

A plataforma é mais um elemento neste processo, constituindo mais um elo relacional, ao aproximar o produtor e o consumidor, conectando-os com um trabalhador, que executa uma tarefa e serve agora a três lados da transação. A plataforma é o intermediário da nova relação multilateral. Definitivamente, com o surgimento da plataforma, não podemos mais falar em relações de trabalho bilaterais. Há seguramente mais de dois atores, agora. As fronteiras ficam mais nebulosas e nos confundem. Onde termina a produção e onde começa o consumo?

O mundo da plataforma contém é feito de transações intermitentes, não contínuas. O trabalhador que entrega o produto objeto da transação entre consumidor e produtor pode colaborar com mais de uma plataforma. Faz algum sentido pensar em enquadrá-lo na categoria de relação de emprego com vínculo? Faz algum sentido empurrá-lo para o mundo da relação de trabalho bilateral? Qual o sentido de enquadrá-lo como empregado da plataforma? Por outro lado, é possível considerá-lo um trabalhador autônomo de uma relação bilateral? Definitivamente, é preciso encontrar um novo conceito para caracterizar as relações de trabalho do mundo da plataforma. A dicotomia vínculo x autônomo da relação bilateral, apresentada nos primeiros parágrafos, não é adequada para a relação de trabalho multilateral.

Como proteger os trabalhadores na relação multilateral?

O multilateralismo laboral é um novo formato de relação de trabalho que mantém a característica típica do formato bilateral: a assimetria de poder, O trabalhador que faz a entrega do produto continua sendo a parte menos poderosa frente agora aos três outros atores. Persiste assim o antigo problema: como estabeler algum equilíbrio no novo formato multilateral?

As centrais sindicais simplificam grosseiramente a questão e sugerem que há sim um patrão, a plataforma, retrocedem ao velho modelo, que, como visto não nos serve mais. As plataformas, simetricamente, fazem o mesmo: o trabalhador é um agente autônomo, sem patrão e sem vínculo. Ficamos assim, entre duas propostas antiquadas e polarizadas. E enquanto não se encontra uma saída, a competição predatória continua a operar no mercado de trabalho das plataformas.

Aqui, novamente, a microeconomia pode nos socorrer, pois estamos diante de um problema muito familiar aos economistas, a “tragédia dos comuns”. Quando a terra de pasto é livre, os criadores de animais desfrutam coletivamente do espaço para alimentar seus rebanhos. A coisa vai bem até o momento em que os rebanhos crescem a tal ponto que a grama não é mais suficiente para alimentar todos os animais. Se há um líder previdente na comunidade, ele pode antecipar este momento, mas na ausência de liderança e de capacidade de planejamento, a comunidade chegará a uma situação de conflito. A solução é bastante simples: dividir a terra entre os produtores e dar um título de propriedade a cada um. Todos têm direito a uma parte do recurso comum e o utilizam no limite da sua propriedade.

O trabalho dos entregadores de plataforma é semelhante ao caso da tragédia dos comuns: eles são o terreno amplo, o recurso comum. São utilizados sem nenhuma regulação, até agora. Não se pode e nem se deve esperar até o ponto de “exaustão” do recurso comum. A solução pode ser encontrada atribuindo um “direito de propriedade” às partes envolvidas, com um detalhe importante. Haveria dois direitos de propriedade, e, nos dois casos, a escolha inicial caberia à plataforma. Ela poderia escolher entre o regime da CLT e se reconhecer como empregadora do trabalhador. A outra possibilidade para a plataforma seria escolher o modelo multilateral, com trabalho autônomo sem vínculo e responsabilidade compartilhada entre a plataforma, o produtor e o consumidor. Neste caso, ao acionar o serviço, as três partes concordariam em compartilhar a responsabilidade pelo serviço executado pelo trabalhador.

A escolha da CLT implicaria em fazer da plataforma a única responsável na relação de trabalho. A escolha pela relação multilateral implicaria em considerar o trabalho em plataforma como autônomo, mas sob responsabilidade múltipla. A escolha obrigaria à adesão a um pacto que detalharia os direitos e deveres de cada parte na relação. A redação inicial do pacto seria oferecida pela plataforma e poderia ser modificada à medida que as partes se organizassem para negociar coletivamente seu conteúdo.

Os participantes do pacto constituiriam a unidade de negociação na qual as quatro partes definiriam os detalhes e as regras de operação dos serviços. As regras poderiam cobrir, por exemplo, as condições de trabalho, a remuneração, a transparência da operação da plataforma, as responsabilidades em relação a acidentes, saúde, previdência e, até mesmo, uma conta vinculada precaucionaria, para criar uma poupança destinada a financiar períodos de inatividade, seguro de vida e até mesmo aposentadoria complementa. Poderia criar mecanismos autônomos de solução de conflitos, que substituiriam a intervenção da Justiça do Trabalho.

Nas duas escolhas, estaríamos tentando evitar a repetição da “tragédia dos comuns”. A escolha da relação de subordinação com vínculo, embora legítima, preservaria um modelo de proteção antiquado, voltado para o passado e baseado em instituições arcaicas. Por outro lado, com a escolha da relação multilateral ingressaríamos em uma nova era de relações de trabalho, protegidas coletiva e voluntariamente pelos participantes e compatível com as transformações decorrentes da horizontalização da produção.

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Professor Sênior da FEA/USP e Coordenador do Salariômetro da Fipe


[i] Coase RE. 1937. The nature of the firm. Economica 4: 386–405.

[ii] Becker, GS, Human Capital: A Theoretical and Empirical Analysis, with Special Reference to Education, New York: Columbia University Press, 1964.

[iii] Williamson, OE, Michael L. Wachter and Jeffrey E. Harris; Understanding the Employment Relation: The Analysis of Idiosyncratic Exchange; The Bell Journal of Economics Vol. 6, No. 1 (Spring, 1975), pp. 250-278



Dr. Marcelo Mascaro

Advogado do Trabalho, CTO

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