O significado da autorregulação do teletrabalho

Por Hélio Zylberstajn
Professor Sênior da FEA/USP e Coordenador do Projeto Salariômetro da Fipe

A Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017) contém seis dispositivos que tratam do teletrabalho. Cinco deles, os artigos 75-A a 75-E, definem o teletrabalho e estabelecem a necessidade de contrato individual específico para este regime de trabalho.

O contrato deve contemplar a “…responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho remoto, bem como ao reembolso de despesas arcadas pelo empregado…”.

Estabelecem ainda que “o empregador deverá instruir os empregados, de maneira expressa e ostensiva, quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho”.

Finalmente, o sexto dispositivo acrescentou o regime do teletrabalho entre as exceções do controle da jornada, no artigo 62-III. O tratamento que a Lei 13.467 dá ao teletrabalho é surpreendente, à luz da nossa tradição de regulação consubstanciada principalmente na CLT.

Nossa tradição legal em assuntos trabalhistas é a produção de normas em grande número e bastante detalhadas, e, desta vez, ao tratar do teletrabalho, a norma é parcimoniosa nos temas tratados e remete o detalhamento para o contrato individual, realisticamente reconhece a natureza distinta desse regime de trabalho e abandona a pretensão de controlar a jornada, algo igualmente muito raro.

O tratamento inovador do tema na Reforma Sindical não chamou muita atenção, de início, porque o teletrabalho, embora em expansão, era ainda pouco frequente em 2017.

Mas, com a pandemia do COVID 19, a necessidade do distanciamento social obrigou empresas privadas e instituições públicas a transferir apressadamente os empregados para suas respectivas casas e o trabalho de escritório passou a ser feito à distância, em grande escala.

A pandemia alterou radicalmente as condições de trabalho para uma parcela apreciável da força de trabalho, criando imediatamente a necessidade de detalhar a regulamentação do teletrabalho, ajustando-o à nova situação.

Parlamentares têm apresentado no Congresso Nacional diversos projetos de lei que pretendem regular o teletrabalho. A maioria deles é detalhada e paternalista, repetindo nossa tradição de tentar imaginar e prever na lei todas as situações e proteger os trabalhadores de todos os inconvenientes e ameaças que a nova situação poderia criar.¹ .

Os projetos, via de regra, reproduzem a preocupação de tutelar os trabalhadores e contemplam grande quantidade de temas, tais como controle de jornada, extensão de direitos previstos na CLT aos teletrabalhadores, garantia de repouso, férias, jornada, tratamento de estagiários, de aprendizes, pessoas com deficiência, cláusulas específicas para empresas multinacionais, etc.

Enquanto estes projetos tramitam, a realidade não poderia esperar. Para cuidar concretamente da diversidade de aspectos, empresas e trabalhadores começam regular o teletrabalho por meio da negociação coletiva.

A Tabela 1 a seguir mostra a quantidade de instrumentos coletivos que tratam de teletrabalho e que foram registrados no Mediador desde 2019, até fevereiro último.

No período coberto, houve 5.169 negociações, sendo 4.576 (88,5%) acordos coletivos e 593 (11,5) convenções coletivas. O expressivo crescimento da negociação do teletrabalho em 2020 foi causado, evidentemente, pela explosão do trabalho à distância, causada pela Pandemia.

Nada menos que 77,6% dos instrumentos coletivos têm início de vigência naquele ano. A pequena quantidade observada em 2021 é causada, de um lado, pelo menor número de meses (apenas dois, janeiro e fevereiro), e, de outro, pela demora no envio e no processamento do registro dos instrumentos no Mediador.

Muitos instrumentos com vigência nestes dois meses ainda não foram enviados e/ou ainda estão em processo de revisão no Mediador. Levando isso em conta, não será nenhuma surpresa que no presente ano a quantidade de instrumentos se equipare à observada em 2019.

Os números apresentados indicam que trabalhadores e empresas estão engajados na autorregulação do regime de trabalho à distância. Não podem esperar a regulamentação via Congresso e, muito provavelmente, preferem eles mesmos regular a matéria.

E o que está sendo negociado? O exame do conteúdo dos instrumentos revela que a proteção negociada no teletrabalho já cobre 3 aspectos: condições de trabalho, benefícios e temas sindicais, de acordo com a Tabela 2 a seguir.

O grupo de condições de trabalho inclui a cláusula que dispõe sobre o fornecimento dos equipamentos pelo empregador, que tem a maior presença nas negociações. Em 2019, estava presente em quase 1/3 dos instrumentos negociados, mas a proporção se reduziu nos dois anos seguintes.

As outras cláusulas deste grupo têm presença crescente ao longo do período. Quanto aos benefícios, nota-se igualmente crescimento na presença destes itens, sendo o mais comum a ajuda de custo para a manutenção dos equipamentos, cujo valor mediano é da ordem de R$100 mensais.

Neste grupo, há uma cláusula que está sendo gradualmente abandonada: a garantia de direitos idênticos aos empregados em regime de teletrabalho.

É possível que, no início do período coberto, os sindicatos tivessem o receio de que, transferidos para o teletrabalho, os trabalhadores fossem classificados em outra categoria e perdessem os direitos assegurados até então.

A redução na presença dessa cláusula pode indicar que o receio inicial deixou de se justificar. Nos assuntos sindicais, a única cláusula negociada tem o objetivo de manter o enquadramento sindical dos teletrabalhadores. A redução da presença dessa cláusula indica que esse temor está desaparecendo e a cláusula tende a ser abandonada,

A Tabela 2 documenta a adequação da negociação coletiva como instrumento para regulamentar o teletrabalho, com conteúdo detalhado, abrangência crescente e resultados que parecem promissores. Aparentemente, estamos diante de uma inovação importante pelo seu significado simbólico: a afirmação da negociação coletiva como mecanismo de regulação, pela primeira vez chegando antes da legislação. No mínimo, essa prática servirá para balizar a lei, quando e se o Congresso estiver pronto para deliberar sobre o tema. Teremos, então, invertido o processo brasileiro de regulação e dado prioridade e reconhecimento à negociação coletiva como fonte para detalhar adequadamente os direitos trabalhistas.

¹Cinco exemplos de iniciativas de parlamentares são os Projetos de Lei 5.581, 4.931, 3.915, 2.251 e 1.247, todos de 2020 e todos propostos na Câmara Federal, conforme relato encontrado em https://sperling.adv.br/publicacoes/tendencias-legislativas-e-da-jurisprudencia-trabalhistano-teletrabalho/, de autoria das advogadas Lídia Alves Lage e Natália Toledo Galera.

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