A rescisão do contrato de trabalho e a negociação coletiva

Por Hélio Zylberstajn
Professor Sênior da FEA/USP e Coordenador do Projeto Salariômetro da Fipe
Nosso sistema de relações de trabalho, nascido no Estado Novo de Getúlio Vargas, privilegia o papel do Estado na administração das relações e dos conflitos do trabalho, em detrimento da autonomia das partes. A concepção fascista que lhe deu forma sobrevive até hoje e continua submetendo empresas e trabalhadores, impedindo-os de autodeterminar regras para gerir suas relações.
Um dos aspectos mais esdrúxulos do sistema é a persistência do controle estatal sobre a terminação da relação de emprego. Quando a empresa desliga seu empregado ou o empregado se demite, as duas partes produzem um termo de rescisão do contrato de trabalho, com o qual o empregado assina a quitação das verbas rescisórias.
Mas, mesmo com a assinatura da rescisão e da quitação, o contrato não estará terminado, pois o trabalhador ainda terá o direito de reclamar verbas adicionais na Justiça do Trabalho.
Esta instituição tem o poder de não reconhecer os documentos terminativos da relação de emprego, a não ser que sejam elaborados sob o seu comando. Para a Justiça, o trabalhador é um ente hipossuficiente, sem condições de cuidar autonomamente de seus interesses trabalhistas e ela existe para suprir essa carência.
É uma situação curiosa: como o Estado não reconhece a suficiência do trabalhador, é preciso dotá-lo de um instrumento que o proteja.
A suposta falta de capacidade para rescindir o contrato de trabalho cria a necessidade da Justiça do Trabalho. São duas faces da mesma moeda. O cidadão brasileiro pode se casar, se divorciar, criar seus filhos, comprar ativos, vender ativos, votar, ser votado. Mas não pode negociar a saída da empresa onde trabalha, nem individualmente (o que faz algum sentido diante da assimetria de poder na relação de trabalho) e nem coletivamente (representado pelo seu sindicato).
Mesmo assistido por seu sindicato, pode até dar quitação da rescisão do contrato de trabalho, mas a rescisão não o rescinde. Somente a Justiça pode terminar definitivamente uma relação de emprego. Sem o carimbo do juiz, nenhuma rescisão é definitiva.
Outra curiosidade
A CLT estabelecia até pouco tempo atrás, que a rescisão do contrato do trabalhador com mais de um ano de tempo de serviço deve ser homologada com a assistência do Ministério do Trabalho ou do sindicato.
Mas, afinal, porque se exigia a assistência se, mesmo assistido, o trabalhador podia reclamar na Justiça do Trabalho depois da rescisão e da quitação? Será que nosso modelo considera hipossuficientes não apenas o trabalhador, mas até mesmo o sindicato e o próprio Ministério do Trabalho?
A Reforma Trabalhista corrigiu parcialmente esta contradição, ao eliminar a necessidade da homologação do rescisão. Mas, permanece a situação curiosa: se a rescisão for homologada, não serve como etapa terminativa do contrato de trabalho.
Houve várias tentativas para alterar o tratamento da rescisão do contrato de trabalho no Brasil. Uma delas, em seguida à promulgação da Constituição de 1988, tentou alterar as regras para a rescisão do contrato de trabalho rural.
Outra, logo em seguida, foi a tentativa de alterar a Súmula 330, que trata deste tema, introduzindo a possibilidade de considerar a rescisão definitiva, sem necessidade de pronunciamento da Justiça do Trabalho. Em 1998, criou-se o procedimento da Conciliação Prévia, por meio da Lei 9958, que, por sinal ainda está em vigor, embora o procedimento não tenha vingado.
Todas as tentativas, até hoje, encontraram forte resistência na Justiça do Trabalho e em outros setores com interesse na manutenção do monopólio do judiciário trabalhista, que prevalece, até hoje.
Alguma coisa mudou?
A Reforma Trabalhista de 2017 introduziu duas mudanças na regulamentação da rescisão do contrato. Primeiro, criou o acordo extrajudicial, com natureza terminativa, mediante o qual a empresa e o empregado podem rescindir o contrato de trabalho, desde que submetido a homologação judicial.
O judiciário trabalhista se refere a este procedimento como “Jurisdição Voluntária”, e registra o respectivo movimento processual e algumas estatísticas específicas. Para conhecer alguns detalhes, vamos primeiro procurar saber quais são as razões para a não homologação. Em seguida, tentaremos avaliar a quantidade de pedidos de homologação.
Em uma amostra colhida ao acaso no TRT-02, selecionou-se 36 acordos extrajudiciais submetidos entre 2018 e 2021, dos quais apenas 18 receberam homologaçãoii.
A amostra não possui representatividade estatística, tendo sido colhida apenas para exibir alguns dos argumentos da Justiça do Trabalho para negar homologação a acordos extrajudiciais.
A Tabela 1 exibe estes argumentos e mostra que dos 18 casos não homologados, 7 foram desqualificados devido a “ausência de concessões mútuas”, 5 devido a “acordos sobre verbas rescisórias” (que os juízes não aceitam em decorrência da hipossuficiência do trabalhador) e 4 devido a “ausência de requisitos formais”.
Ora, nas audiências de conciliação, o juiz induz a transação de verbas rescisórias, não prima por cuidar de concessões mútuas e muitas vezes deixa de observar requisitos formais. Mas nada disso é permitido quando se trata de negociação autônoma entre as partes.

Antes de prosseguir, é preciso descrever o fluxo das diversas etapas do procedimento. Quando ocorre o desligamento do empregado, as duas partes podem negociar o acordo extrajudicial para rescindir e quitar o contrato de trabalho, desde que devidamente assistidas por seus respectivos advogados (no caso do empregado, pode ser o advogado do sindicato).
Firmado o acordo, as partes o submetem para homologação na Vara do Trabalho (a primeira instancia da justiça trabalhista). O juiz decide sobre a homologação e sua decisão constitui uma sentença.
Caso não homologue, uma ou as duas partes podem recorrer à segunda instância, que por sua vez, pode confirmar ou reverter a decisão de primeira instância, emitindo um acórdão.
Para verificar a evolução quantitativa dos acordos extrajudiciais, fez-se uma busca nas ementas do no conjunto de todos os processos na base de dados do TRT 02, no período de 2017 a 2021.
Procurou-se os processos que contêm a expressão “jurisdição voluntária”, utilizada na Justiça do Trabalho para designá-los. A Tabela 2 a seguir apresenta o resultado da busca:

Os dados mostram que a quantidade de acordos extrajudiciais ainda é pequena, mas está crescendo. Até a data em que a busca foi feita, houve 1.686 solicitações de homologação na 1ª. Instância, sendo que 65% delas ocorreram no ano de 2020 e 2021 (até 23/08), o que indica um processo de aceleração no número de acordos. O acordo extrajudicial é uma inovação importante, mas ainda subordinada ao controle do judiciário trabalhista.
As fragilidades das razões que a Justiça do Trabalho utiliza para justificar a não homologação demonstra com muita clareza e sem surpresa sua hostilidade em relação ao novo procedimento. É uma atitude de defesa de território, ameaçado pelo surgimento de mecanismos alternativos mais modernos e independentes para administrar as relações de trabalho.
A segunda inovação é a quitação anual, mecanismo que a empresa pode utilizar para obter do trabalhador a quitação dos direitos devidos durante os 12 meses de referência. Não há necessidade de demitir o trabalhador para obter a quitação anual. A relação de trabalho permanece, e as partes reconhecem mutuamente, que não há pendências no período quitado.
Com este novo mecanismo, a empresa pode eliminar continua e periodicamente o “passivo trabalhista” potencial de todos os seus empregados, na medida em que obtenha a quitação e esta seja aceita pela Justiça do Trabalho. Infelizmente, não se dispõe ainda de dados sobre a frequência e extensão com que a quitação anual é usada, e o Projeto Salariômetro está começando a levantar algumas informações sobre este tema, que são apresentadas na próxima seção.
O papel da negociação coletiva
Uma das medidas mais polêmicas e mais relevantes da Reforma Trabalhista foi o estabelecimento da prevalência do negociado sobre o legislado. Teria este princípio chegado à questão da rescisão e da quitação? Em que medida, estas questões passaram a ser tratadas na mesa de negociação?
Para endereçar esta questão, neste texto, se procura, ainda preliminarmente, investigar o impacto da Reforma Trabalhista no tratamento coletivo da rescisão e da quitação. O primeiro passo é verificar se houve algum impacto quantitativo e, para tanto, fez-se uma busca no banco de instrumentos coletivos do Projeto Salariômetroiii, com a palavra “quitação”. A Tabela 3, a seguir, apresenta o resultado.

A presença percentuais de cláusulas de quitação é maior nas convenções coletivas do que nos acordos coletivos, mas nestes últimos, tem crescido acentuadamente. Ao mesmo tempo, a proporção equivalente nas convenções coletivas tem permanecido bastante estável.
Nos acordos coletivos, evoluiu de 13,9% em 2007 para 26,8% em 2021. Nas convenções coletivos, passou de 34,3% para 39,4% no mesmo período. Os números mostram que a presença percentual nos acordos coletivos tem crescido mais rapidamente do que nas convenções.
Em 2007, a presença nas convenções coletivas era 2,5 vezes maior, passando em 2021 para apenas 47% maior. Estes primeiros números mostram que empresas e trabalhadores estão crescentemente tratando de incluir nos acordos coletivos o tema da quitação, que antes era mais frequente nas convenções coletivas.
Os gráficos 1 e 2 oferecem uma perspectiva comparativa mais completa para se acompanhar a evolução da presença do tema das quitações.


No Gráfico 1, por exemplo, percebe-se que a proporção de convenções coletivas com cláusulas de quitação tem diminuído, resultado da estagnação da presença em termos percentuais e da redução na quantidade de negociações, observada após a Reforma Trabalhista.
No caso dos acordos coletivos, mesmo com a retração na atividade negocial, a quantidade de instrumentos com cláusulas de quitação cresceu em termos absolutos. Por outro lado, o Gráfico 2, que apresenta a evolução da presença destas cláusulas, em termos percentuais, permite que o exame visual identifique as duas tendências distintas.
Os dois próximos gráficos desagregam a presença das cláusulas de quitação segundo os setores econômicos, separadamente, nos Acordos Coletivos (Gráfico 3) e nas Convenções Coletivas (Gráfico 4).
Nos dois casos, apresenta se a presença média no intervalo 2007-2021 e a presença no ano de 2021, que indica a variação marginal recente em relação à média histórica. No Gráfico 3, dos acordos coletivos, é bastante claro que há uma forte variação marginal (2021 em relação à média do período) nos Serviços, na Construção Civil e no Comércio.
A variação marginal é bem menor na Indústria e na Agricultura. No Gráfico 4, das Convenções Coletivas, as variações marginais mais acentuadas se localizam na Agricultura, nos Serviços e na Construção Civil.
Estes dois gráficos mostram que nos Serviços e na Construção Civil, as cláusulas de quitação crescem com mais intensidade no período mais recente, tanto nos Acordos Coletivos quanto nas convenções coletivas. A Agricultura parece preferir o caminho da Convenção Coletiva, enquanto o Comércio se vale mais intensamente dos Acordos Coletivos.

Os dados apresentados nesta seção mostram que há movimentos bastante perceptíveis em direção à inclusão da quitação e rescisão nas pautas da negociação coletiva. Alguns setores preferem a inclusão em acordos coletivos, outros em convenções coletivas. Para entender o significado destes movimentos será necessário mergulhar no conteúdo das cláusulas e verificar se há diferenças entre os dois caminhos.

Considerações finais
Se fosse possível mudar os pressupostos formativos do nosso sistema de relações de trabalho, adotando o princípio de que as partes se bastam, poderia surgir um modelo radicalmente distinto do atual. Empresas e trabalhadores seriam capazes de construir mecanismos e regras para regular relações de trabalho.
Se tivessem capacidade legal para dispor do contrato de trabalho, grande parte das funções e das atividades do judiciário trabalhista desapareceriam. As tentativas feitas para alcançar autonomia na solução dos conflitos individuais falharam – e não foram poucas – exatamente porque não se conseguiu substituir os alicerces do sistema.
Há alguma evidência empírica sobre um movimento que tenta remeter a quitação e a rescisão para o terreno da negociação coletiva e não deve ser coincidência que este movimento ganhou força depois da Reforma Trabalhista. Qual será a motivação e o objetivo deste movimento? Pode-se levantar duas hipóteses conflitantes:
(a) Seria uma tentativa de, utilizando a prevalência do negociado sobre o legislado, construir um mecanismo autônomo para solucionar divergências?
(b) Seria uma maneira de assegurar o recolhimento de taxas pelo serviço de homologação das rescisões, que continuaria a não rescindir, mas traria alívio para as finanças sindicais?