Impactos da pandemia no mercado de trabalho

entenda os impactos da pandemia no mercado de trabalho

Por Hélio Zylberstajn

Professor Sênior da FEA/USP e Coordenador do Projeto Salariômetro da Fipe

O objetivo deste texto é verificar como a pandemia do COVID afetou o mercado  de trabalho, em três dimensões: ocupação (e não ocupação), rendimentos  médios do trabalho e massa de rendimentos do trabalho. 

A análise cobre o  período de dois anos, entre o trimestre terminado em setembro de 2019 e o  terminado em setembro de 2021. Em seguida observamos suas evoluções  segundo as atividades econômicas e depois segundo a forma de inserção dos  trabalhadores no mercado de trabalho (a posição na ocupação).

Concluímos  com algumas considerações finais para avaliar os desdobramentos da evolução  recente sobre os desocupados e os indivíduos fora da força de trabalho.

1. Evolução do mercado de trabalho como um todo  

O Gráfico 1 a seguir apresenta as três dimensões com as quais se deseja  observar o período considerado. A curva azul representa a quantidade de  indivíduos ocupados, que se reduz abruptamente entre março e agosto de 2020,  e inicia uma lenta, mas contínua recuperação, sem porem, voltar ao nível inicial  (as quantidades desta curva estão representadas no eixo esquerdo do gráfico).  A curva avermelhada, que representa o rendimento médio do trabalho  (habitualmente recebido) tem um comportamento simétrico à primeira curva. À  medida em que a quantidade de ocupados se reduzia, o rendimento médio  crescia até se estabilizar exatamente no período mais grave da pandemia (julho  e setembro de 2020).  

veja a variacao do rendimento medio em relacao a ocupacao durante a pandemia

O comportamento simétrico das duas curvas é resultado de um efeito estatístico.  Entre os trabalhadores que perderam suas ocupações, predominavam aqueles  com rendimentos menores. Os que se mantiveram em seus postos tinham  rendimentos maiores, em geral, do que os que ficaram sem trabalho. Por essa  razão, o rendimento médio cresceu nessa fase da pandemia.

À medida em que  os trabalhadores retornaram à ocupação, o rendimento médio caiu, em  consequência do efeito estatístico provocado pelo ingresso de indivíduos com  menores rendimentos. Os dois movimentos explicam, por sua vez, o  comportamento da terceira curva, de cor preta, que representa a massa de  rendimentos. Esta tem um movimento continuamente decrescente, resultado da  composição de menos pessoas ocupadas e menores salários médios.  

Em síntese, no período considerado, tivemos perdas na ocupação, no  rendimento médio e na massa de rendimentos. O retrato apresentado não deixa  dúvidas sobre o efeito líquido geral da pandemia até aqui.  

2. Evolução segundo as atividades econômicas  

Os impactos da pandemia atingiram diferentemente as atividades. A Tabela 1  mostra que havia 94,7 milhões de indivíduos ocupados em setembro de 2019,  quantidade que caiu para 83,4 milhões um ano mais tarde (perda de -11,3  milhões de postos de trabalho). Em setembro de 2021, a quantidade de  ocupados se elevou pata 93,0 milhões, (1,8 milhões menos que no início do  período).

No período analisado, a ocupação se reduziu em 1,9%. A última coluna  da Tabela 1 apresenta a variação percentual da ocupação nas diversas  atividades. Apenas três atividades tiveram crescimento: Agricultura (+6,8%),  Informação, comunicação, atividades financeiras, etc. (+2,9%) e Construção  (+2,5%). Todas as outras tiveram queda na ocupação, destacando-se Outros  Serviços (-13,5%), Serviços domésticos (-12,4%) e Alojamento e alimentação (- 11,9%). As três atividades com maiores perdas pertencem todas ao Setor de  Serviços e utilizam trabalhadores com baixa qualificação, que recebem baixa  remuneração (como já previsto no exame do Gráfico 1).  

entenda a evolucao das atividades economicas durante a pandemia

A Tabela 2 apresenta a variação do rendimento médio e da massa de  rendimentos em cada uma das atividades. Está organizada em ordem  decrescente da última coluna, que apresenta a variação da massa de  rendimentos do trabalho, que é o resultado composto da variação da ocupação  e do rendimento médio.

Esta coluna mostra que Serviços Domésticos perderam  -19,8%, Alojamento e Alimentação perdeu -17,4% e Outros Serviços perdeu – 17,1%. No outro extremo, Agricultura teve um ganho de 11,3% na massa de  rendimentos. Registre-se que setores importantes tiveram perdas apreciáveis  também: Transporte (-9,4%), Comércio (–7,7%), Administração pública (-7,2%)  e Construção (-6,3%).  

veja variacao das ocupacoes e o impacto da pandemia sob o rendimento medio das atividades economicas

3. Evolução segundo a posição na ocupação  

Neste ponto, passamos a examinar a evolução da ocupação e do rendimento do  trabalho sob a ótica da inserção dos trabalhadores no mercado de trabalho, que  o IBGE denomina como “Posição na Ocupação”. A última coluna da Tabela 3  mostra o impacto percentual na ocupação, ao final do período, em termos  percentuais.

A posição que mais perdeu foi a de Doméstico com carteira: nada  menos que 23,1% destes trabalhadores foram desalojados na pandemia.  Seguem os Funcionários públicos sem carteira (-13,2%), os Empregadores com  CNPJ (-13,1%) e os Trabalhadores domésticos sem carteira (-8,3%) e os  Empregadores sem CNPJ (-5,6%). A quantidade de ocupados cresceu apenas  para duas formas de inserção: Funcionários públicos estatutários e militares  (+0,9%) e Trabalhadores por conta própria com CNPJ, grupo que aumentou em  volume consideravelmente (+26,7%).  

Os trabalhadores mais vulneráveis aos impactos da pandemia na ocupação  foram, sem dúvida, os informais e os micro e os pequenos empresários (os  Empregadores com ou sem CNPJ). Em seguida, os empregados formais do  setor privado. Por outro lado, os menos vulneráveis foram os que trabalham  formalmente na Administração Pública. Este resultado mostra que os trabalhadores alocados nas atividades privadas, diretamente envolvidas com os  mercados, sejam formais ou informais, são mais suscetíveis às flutuações  econômicas. 

Os que trabalham formalmente no Setor Público, por outro lado,  conseguem se proteger por meio da rigidez nos seus contratos de trabalho. A  Tabela 3 mostra que muitos indivíduos, diante da escassez de oportunidades,  decidiram se inserir como autônomos (que o IBGE denomina Trabalhadores por  conta própria). Este movimento, em si, não é novo. Mas há sim, uma novidade:  a categoria que mais cresceu foi a de trabalhadores por conta própria com CNPJ,  que, provavelmente em grande parte, têm registro de MEI (Microempresário  Individual).  

Essa categoria pode abrigar sob a mesma denominação diversas formas de  inserção. Podem ser pessoas que oferecem serviços e/ou bens produzidos em  pequena escala, utilizando formas pouco desenvolvidas de produção;  prestadores de serviços diversos, fabricantes de sanduíches, refeições, bebidas,  mercadorias diversas, e assim por diante.

Outra possibilidade, que não deve ser  descartada de pronto, é que alguns destes indivíduos são na verdade  empregados sem carteira, disfarçados como autônomos, mas trabalhando sob a  supervisão de seus empregadores, que fraudam a legislação trabalhista

Finalmente, um contingente apreciável seriam os trabalhadores de plataformas,  nos mais diversos arranjos (entregadores, motoristas e até mesmo trabalhadores  domésticos). De qualquer forma, o crescimento dessa forma de inserção é  consequência da perda de dinamismo da economia brasileira. Para sobreviver,  muitos trabalhadores assumem a condição de conta própria  

entenda o impacto da pandemia na evolucao das ocupacoes

Para finalizar a análise, ainda sob a ótica da forma de inserção no mercado,  lançamos agora o olhar para os rendimentos dos trabalhadores. Para tanto,  construímos a Tabela 4, que contém a variação da ocupação, do rendimento  médio e da massa de rendimentos do trabalho. Seus dados estão organizados  segundo a ordem decrescente da massa de rendimentos, exibida na última  coluna. As maiores perdas ficaram com os Empregados domésticos com carteira  (-29,5%), Empregadores com CNPJ (-19,4%), Empregadores sem CNPJ (-14,2%), Trabalhadores domésticos sem carteira (-13,4%) e Funcionários  públicos com carteira (-13,3%).  

Os Trabalhadores por Conta Própria com CNPJ foram o único grupo que obteve  ganhos na massa de rendimentos do trabalho (+17,5%). Observe-se que este  grupo teve um crescimento de 26,7% na ocupação e uma queda no rendimento  médio de -7,2%. Portanto, o crescimento de sua massa de rendimento foi  produzido pela significativa expansão do contingente e não pelo aumento na sua  renda média.  

o impacto da pandemia sob o rendimento medio segundo ocupacao

4. Considerações finais

Até aqui, a análise se voltou para os indivíduos ocupados durante a pandemia. É preciso complementar com o outro lado, o lado dos que não conseguiram se  manter ocupados no período.

Para dar conta disso, utilizamos agora dois  conceitos. O primeiro, a usual Taxa de Desocupação, obtida com divisão da  quantidade de indivíduos procurando trabalho pela quantidade de indivíduos que  compõem a Força de Trabalho (os ocupados e os que procuram trabalho).  

Este indicador é insuficiente porque não inclui os indivíduos que estão fora do  mercado de trabalho. Para evitar a subjetividade inerente às categorias de  “subutilização”, consideramos aqui simplesmente a quantidade de indivíduos  com idade de trabalhar (14 anos ou mais). 

Há três situações possíveis para estes  indivíduos: 

  1. ocupados; 
  2. desocupados (procurando trabalho);
  3. fora da  força de trabalho. 

Com estas três categorias, constrói-se aqui duas taxas: a taxa  de desocupação tradicional (desocupados divididos pela força de trabalho) e  taxa de não ocupação, obtida com a soma dos desocupados e dos fora da força  de trabalho dividida pela população em idade de trabalhar. A primeira taxa é a  habitual taxa de desocupação; a segunda é aqui denominada taxa de não  ocupação. 

O Gráfico 2 apresenta a evolução das duas taxas ao longo do período de  existência da PNAD. Neste gráfico, a curva azul representa a Taxa de  Desocupação e a curva avermelhada representa a Taxa de Não Ocupação. A  Taxa de Desocupação começa abaixo de 10% e na pandemia se aproxima de  15%. Termina o período no valor 12,6%. Por outro lado, a Taxa de Não  Ocupação tem um valor histórico próximo aos 40%.

Isso significa que,  historicamente, pouco mais de 40% da população de 14 anos ou mais não trabalha, no Brasil. A crise econômica iniciada em 2014 eleva lentamente essa  taxa, mas apenas em 2020, na pandemia, ela ultrapassa os 50%. Esse nível  perdurou por alguns meses e ao final do período (setembro de 2021) voltou a  ficar abaixo de 50% (mais precisamente, 45,9%).  

evolucao da taxa de desocupacao

O Gráfico 2 é muito útil porque mostra que se pode pensar em dois objetivos  para o mercado de trabalho. Um, mais simples e factível, seria retornar a taxas  de desocupação abaixo de 10%. Seria uma redução de 3 pontos percentuais na  taxa de desocupação, equivalente a absorver algo como 4 milhões de  trabalhadores. Outro, mais ambicioso, seria retornar a taxa de não ocupação às  vizinhanças do seu valor histórico em torno de 42%. Quantas ocupações seriam  necessárias, neste caso?  

A população em idade de trabalho no Brasil, segundo a última PNAD, está se  aproximando de 172 milhões. Para voltar à taxa histórica de não ocupação de  42% (ou seja, a uma taxa de ocupação de 58% da população em idade de  trabalhar), seria preciso ocupar aproximadamente 100 milhões de brasileiros.  Nesse caso, o país precisaria criar 7 milhões de postos de trabalho. Isso, se os  números atuais ficassem congelados. Mas o crescimento demográfico produz  anualmente algo como 1,7 milhões de indivíduos com idade de trabalhar, que  teriam que ser absorvidos na proporção de 58% para manter a taxa de não  ocupação em 42%. Ou seja, precisaríamos adicionar pelo menos 1 milhão de  postos adicionais a cada ano, além dos 7 milhões já mencionados. 

São números muito grandes, que nos impõem metas difíceis de alcançar em  pouco tempo. A mensagem dos dados é bastante clara. Primeiro, como seria  muito difícil obter rapidamente uma expansão tão grande no mercado de  trabalho, no curto prazo, é essencial implementar uma política agressiva de  transferência de renda para socorrer as famílias dos trabalhadores que perderam  suas ocupações e suas rendas na pandemia e ao longo dos anos anteriores a  ela. Segundo, no médio e longo prazos, é preciso retomar o crescimento, a  melhor política para combater a pobreza, a desocupação e a não ocupação. 

Observações

1- O autor publicou uma versão anterior deste texto no Boletim Informações Fipe (BIF), número  491, de novembro/2021, páginas 29 a 33. Naquela versão, o período coberto chegava até o  trimestre terminado em agosto de 2021. A presente versão acrescenta à análise o trimestre  terminado em setembro de 2021 e, com o trimestre adicionado, cobre 2 anos completos. O leitor  que se der ao trabalho de comparar as duas edições verificará que há diferenças importantes  nos resultados numéricos apresentados, que precisam ser esclarecidas.  

2- A Pnad é feita por meio de entrevistas presenciais nos domicílios que constituem suas amostras.  Durante a pandemia, devido á necessidade de se manter distanciamento social, as entrevistas  passaram a ser feitas por telefone e essa mudança na estratégia provocou a perda de uma parte  das respostas. Para corrigir as distorções, o IBGE reponderou as entrevistas realizadas e  atualizou toda a série exatamente na publicação da Pnad do trimestre acrescentado nesta versão  do nosso texto. A atualização afetou toda a série da Pnad, retroativamente, até 2012 e, por essa  razão, o autor teve que atualizar os resultados da versão publicada anteriormente. Apesar das  diferenças numéricas, as análises a as conclusões das duas versões são essencialmente as  mesmas.  

3- Ressalte-se, porém, que os dados da Pnad agora atualizadas tornam seus resultados mais  próximos dos resultados do CAGED, fato que tranquilizou a comunidade de pesquisadores e  estudiosos do mercado de trabalho.  

Compartilhe