A regulamentação do regime de trabalho híbrido: lei ou negociação?

entenda a regulamentacao do regime de trabalho hibrido

Por Hélio Zylberstajn, Professor Sênior da FEA/USP, Coordenador do Salariômetro da Fipe e sócio do escritório Mascaro Nascimento Advogados.

Introdução

A primeira consequência trabalhista relevante da pandemia foi a abrupta segmentação entre os trabalhadores presenciais e os virtuais. Trabalhadores cujas ocupações podem ser exercidas remotamente migraram rapidamente do regime de trabalho presencial para o virtual. Os que exercem ocupações presenciais permaneceram nos seus locais de trabalho e passaram a formar o contingente de “trabalhadores heróis”, ou trabalhadores essenciais, pois se arriscaram diariamente a adquirir a doença nos seus ambientes de trabalho ou nos deslocamentos para o trabalho e para casa. Suas atividades continuaram as mesmas, mas acompanhadas de um grande componente de risco sanitário. Todos devemos o reconhecimento e a homenagem aos presenciais, que garantiram a continuidade da atividade econômica, mesmo nos priores momentos da pandemia. 

Os trabalhadores à distância, por sua vez, vivenciaram a situação inteiramente nova de operar sob o regime de trabalho remoto (também designado por teletrabalho ou trabalho à distância ou ainda home office). Tiveram que aprender rapidamente a administrar e dividir seu tempo e sua atenção num ambiente em que as relações familiares e de trabalho competem por se manifestarem simultaneamente e no mesmo local. Com o teletrabalho, empresas e trabalhadores se viram diante de novos desafios. Por exemplo: como manter a produtividade do trabalho? O trabalho remoto a aumenta ou a diminui? Como controlar a jornada de trabalho? Relacionada com esta última, o teletrabalho aumenta a duração da jornada? Se sim, as empresas retribuem com pagamento de horas extras e adicionais? Ou, ao contrário, o novo regime suaviza a jornada de trabalho? E mais: como o teletrabalho afeta a privacidade do trabalhador? Como são administrados os novos riscos à saúde decorrentes do trabalho digitalizado? E quem deve pagar os gastos decorrentes do trabalho à distância (eletricidade, conexão com a internet, manutenção do equipamento etc.)?

A nova situação tem sido objeto de muitos estudos, que procuram respostas para estas e para outras questões. A seguir, apresenta-se uma amostra pequena da literatura que já se produziu sobre o tema, aqui concentrada no tema da produtividade no teletrabalho. Sabe-se, por exemplo, que o teletrabalho reduziu ou até mesmo eliminou o tempo gasto com o transporte do/para o local de trabalho e o tempo ganho parece ser usado para reuniões virtuais (os tão conhecidos “calls”), que substituem o contato presencial direto e frequente da época anterior à pandemia.

Pesquisadores investigam também a relevante questão da escolha das empresas entre autonomia versus controle sobre o trabalho, com vistas a manter ou aumentar a produtividade do trabalho. Há evidências indicando que a autonomia aumenta a produtividade do teletrabalho e o desempenho da empresa, desde que combinada com um domicilio familiar amigável ao trabalho e metas de produção realistas. Nestas condições, os trabalhadores podem até mesmo alterar suas preferencias no pacote de remuneração, optando por mais benefícios a aumentos salariais, combinação que diminui o custo do trabalho para a empresa e aumenta a satisfação do empregado. Mas a questão da produtividade no teletrabalho não está pacificada, pois há evidências apontando em sentido contrário, indicando que a produtividade do teletrabalho aumentou ao longo da pandemia (provavelmente devido à evolução em alguma curva de aprendizado), mas que, mesmo assim, é menor do que antes da pandemia.

Para as empresas, o teletrabalho reduziu muitos custos, especialmente os relacionados à infraestrutura. Ao mesmo tempo, criou o desafio aqui documentado, de manter o nível de produtividade anterior à pandemia. Por outro lado, muitos trabalhadores aprenderam a gostar da experiência de trabalhar em casa e de ter mais autonomia. Com a redução da letalidade e do contágio do COVID 19, as empresas iniciaram o movimento de volta ao regime presencial e descobriram que muitos empregados não ficaram satisfeitos com o retorno. A insatisfação tem sido revelada em matérias jornalísticas recentes e também tem sido documentada em pesquisas sistemáticas. 

O aparente desencontro de interesses parece estar induzindo uma solução intermediária e consensual, que contempla todas as preferências e que, por essa razão, pode ter resultados muito positivos para os dois lados: é o regime de trabalho híbrido. Já se dispõe inclusive de evidências empíricas sobre as qualidades e as maneiras de utilizar este regime. No Brasil, sabe-se que o regime de trabalho híbrido é largamente utilizado nos setores administrativos e nas ocupações típicas de TI.

Os próximos parágrafos discutem o teletrabalho no Brasil, apresentando, primeiro, as bases legais que o regulamentam, inclusive a recente Medida Provisória 1.108, que deu segurança jurídica exatamente ao regime híbrido. Em seguida, apresenta-se um conjunto de evidências sobre a inclusão do regime híbrido nas negociações coletivas, documentadas por informações extraídas do Salariômetro da Fipe.

Legislação aplicável ao teletrabalho

Em 2017, a Lei 13.467 implantou a ampla Reforma Trabalhista que, entre outras inovações relevantes, estabeleceu a dispensa de controle de jornada para o teletrabalho. O uso do home office estava então se tornando frequente, a ponto de atrair a atenção do legislador para a dificuldade de controle sobre o trabalho à distância. A Lei 13.467 não se preocupou com outros aspectos do teletrabalho, pois seu objetivo maior era induzir a ampliação do escopo da negociação coletiva, considerado pelo legislador como o mecanismo mais apropriado para regular as relações de trabalho. Com esta abordagem, se limitou a garantir a autonomia na distribuição do tempo de trabalho. Quando a pandemia atingiu o Brasil, as empresas se sentiram suficientemente seguras para adotar generalizadamente o home office, decisão que reduziu os impactos negativos sobre a atividade econômica.

Dois anos de uso do teletrabalho trouxeram ao debate a necessidade de rever a dispensa generalizada do controle de jornada. Os sindicatos argumentam que, com a liberalização do controle, as empresas estariam submetendo os empregados a jornadas extensas, maiores que as 8 horas previstas na Constituição, e/ou a um ritmo de trabalho excessivamente intenso. O teletrabalho, argumentam ainda os sindicatos, pode produzir doenças ocupacionais de natureza física ou mental, que prejudicam a saúde dos seus representados. Como a Lei 13.467 não dispõe sobre estes aspectos, o vazio regulatório gerou situações de insatisfação no trabalho, induziu reclamações na Justiça do Trabalho e trouxe insegurança jurídica às empresas. Além disso, a volta ao regime presencial tem também criado insatisfações que levam as empresas a adotar o regime de trabalho híbrido, situação não prevista na Lei 13.467, e que também tem potencial para produzir litigiosidade e mais insegurança jurídica. 

Para corrigir estas situações e algumas outras, o governo editou a Medida Provisória 1.108, em 25/03/2022, uma tentativa de aperfeiçoamento da regulamentação da matéria. Algumas das mudanças introduzidas são listadas a seguir:

  • A dispensa de controle de jornada agora se aplica apenas aos casos de remuneração por produção. Neste caso, o trabalhador tem liberdade para adotar horário flexível e até mesmo descontínuo de trabalho.

A MP foi coerente ao manter a isenção de controle de jornada no caso de remuneração por produção. A própria regra de remuneração funciona como um “dosador” do esforço do empregado. No entanto, permanece a questão da possibilidade de estabelecimento de metas muito exigentes, que podem induzir sobrecarga de trabalho. 

  • Quando a remuneração é fixa, é preciso controlar a jornada e a empresa escolhe o instrumento de controle, podendo ser inclusive o telefone celular. 

Aqui a MP acerta duplamente. Primeiro, estabelece o controle de jornada quando a remuneração é fixa; segundo deixa à empresa a escolha do instrumento de controle. Nas gestões petistas, o governo tinha obrigado o uso do REP (Registro Eletrônico de Ponto), de modelo único e ultrapassado já na época da sua implantação. Pelo menos no teletrabalho, as empresas e os trabalhadores podem agora usar instrumentos mais modernos e eficientes, de livre escolha.

  • A base territorial para os trabalhadores remotos é a da empresa que os contrata. 

A MP adota aqui um enfoque contemporâneo. Para não deixar dúvida sobre a entidade sindical que representa o trabalhador, o critério é a localização da empresa. É fácil perceber a importância da adoção deste critério, tendo em vista a proliferação do trabalho à distância. Eliminou-se a possibilidade de a empresa ter que lidar com inúmeros sindicatos, localizados em municípios onde os teletrabalhadores residam.

  • Estagiários e aprendizes podem exercer suas atividades no regime de teletrabalho.

Esta autorização estava realmente faltando. Dará segurança às empresas e ampliará as oportunidades de trabalho para trabalhadores jovens, os mais vulneráveis à desocupação, na fase crítica de transição da escola para o mercado de trabalho.

  • Reembolso de gastos com energia elétrica, internet e demais equipamentos necessários ao teletrabalho.

É uma garantia necessária que a MP assegura para os teletrabalhadores.

  • A empresa pode adotar o regime híbrido, com liberdade de calibrar o número de dias em casa e na empresa. 

Este dispositivo atende exatamente a tendência de volta ao presencial e dá garantia legal para a adoção do regime híbrido. O texto deixa claro que o trabalho em casa ou na empresa não precisa ser preponderante para caracterizar a natureza híbrida do regime de trabalho.

Para um rápido balanço, note-se primeiro que a MP 1.108 introduz avanços importantes para o teletrabalho e particularmente para o regime híbrido. Sua principal virtude é ter abordado os temas de forma qualitativa, evitando quantificações e regras excessivamente detalhadas. Por exemplo, na definição de regime híbrido, deixou a combinação do local de trabalho (casa ou empresa) totalmente aberta e flexível. Outro exemplo: contrariamente à nossa tradição na legislação trabalhista, não fixou valores para o reembolso das despesas com a infraestrutura para o trabalhador. Felizmente, de novo contrariando nossa tradição, os autores da MP não tiveram a pretensão de cobrir todos os aspectos da matéria, o que teria produzido uma legislação extensa e detalhada e provavelmente inviável e inaplicável. 

Há diversos temas não abordados, entre os quais, talvez o mais relevante, a saúde ocupacional, matéria complexa e de regulação difícil e muito técnica. A MP 1.108 não encerra o capítulo da regulação do teletrabalho, deixando um vasto campo para a auto regulação por meio da negociação coletiva, que, na verdade, já está ocorrendo. A próxima seção apresenta um balanço da negociação coletiva do regime híbrido, utilizando os dados coletados no Salariômetro da Fipe

O regime híbrido de trabalho na negociação coletiva

O Salariômetro acompanha o conteúdo das negociações coletivas utilizando os instrumentos que o Ministério do Trabalho e Previdência disponibiliza na página Mediador. Para este texto, procurou-se acordos coletivos e convenções coletivas com início de vigência entre janeiro/2021 e março/2022, selecionando os instrumentos que contêm cláusulas de regime híbrido de trabalho. Foram encontrados 496 instrumentos, sendo 362 acordos e 134 convenções. 

A Tabela 1 e os Gráficos 1, 2 e 3 a seguir apresentam a presença da negociação do regime híbrido ao longo do período estudado, que foi dividido em cinco trimestres. No total, foram examinados 39.377 instrumentos (31.621 acordos coletivos e 7.756 convenções coletivas), que tinham sido enviados ao Mediador e disponibilizados pelo Ministério do Trabalho e Previdência até o fechamento deste artigo. Note-se que a quantidade de instrumentos do primeiro trimestre de 2022 é bastante inferior à do primeiro trimestre do ano anterior. Isso se deve à demora para as partes enviarem os instrumentos negociados ao Mediador. Registre-se que, como a análise leva em conta as proporções e não as quantidades absolutas, não se espera que a menor quantidade de instrumentos observada nos trimestres mais recentes afete os resultados obtidos.

A Tabela 1 revela que a presença cláusulas de regime híbrido é ainda pequena, chegando a apenas 1,2% do total de instrumentos, sendo maior nas convenções coletivas (1,7%) do que nos acordos coletivos (1,1%). Merece destaque o salto na presença de cláusulas de regime híbrido nos acordos coletivos, que atingiu 5,1%, nível que pode indicar uma possível tendência de rápido crescimento, a ser confirmada nos trimestres seguintes. Os Gráficos 1 a 3 revelam a tendência crescente da presença do regime de trabalho híbrido nas negociações coletivas. No conjunto, a presença cresceu 0,5 pontos percentuais, passando de 0,9% para 1,4% no período examinado (Gráfico 3).

Tabela 1: Presença de cláusulas de regime de trabalho híbrido nas negociações coletivas – 1º Trimestre/2021 a 1º Trimestre de 2022

a tabela 1 descreve a presenca de clausulas de regime de trabalho hibrido nas negociações coletivas do primeiro trimestre de 2021 ao primeiro trimestre de 2022

Gráfico 1

Grafico 1

Gráfico 2

Grafico 2

Gráfico 3

Grafico 3

Os técnicos do Salariômetro examinaram cada um dos 496 instrumentos para conhecer o conteúdo das cláusulas de trabalho híbrido. A Tabela 2 a seguir apresenta os resultados encontrados, e mostra, primeiramente, que os acordos coletivos são mais ricos do que as convenções coletivas na regulamentação deste regime de trabalho. Este resultado não é surpreendente, pois o acordo coletivo, por envolver diretamente a empresa e o sindicato, é mais apropriado do que a convenção coletiva para negociar detalhes que interessam aos dois lados. A convenção coletiva última é um instrumento indireto, que envolve as duas entidades sindicais e geralmente não desce aos detalhes que interessam mais de perto a empresa e os trabalhadores. 

Tabela 2: Aspectos do trabalho em regime híbrido regulados na negociação coletiva – 1º Trimestre/2021 a 1º Trimestre de 2022

Grafico 3

O exame do conteúdo negociado revelou a existência de quatro temas mais frequentes na negociação do regime híbrido. O primeiro é a ajuda de custo para financiar as despesas do empregado com a operação do seu equipamento. Esta cláusula está presente em 62,9% dos casos (75,1% nos acordos e 29,9% nas convenções). A segunda cláusula mais frequente á a de prevenção de acidentes, com 52,6%. Esta cláusula aparece em 69,6% dos acordos e em apenas 6,7% das convenções, o que mostra que a negociação direta é mais adequada para tratar dos temas relevantes para as duas partes. A terceira cláusula mais presente é a de horários flexíveis, presente em 38,7% dos casos (36,7% nos acordos e 43,3% nas convenções). Finalmente, o quarto tema é o controle da jornada, que aparece em 37,3% dos casos. A presença deste tema nos acordos é 50,6% e apenas 1,5% nas convenções. 

Considerações finais

Este texto abordou algumas das questões regulatórias que envolvem o home office e mostrou que o regime de trabalho hibrido é uma tendência crescente mundial, que contempla simultaneamente preferências de trabalhadores e necessidades de empresas. Mostrou que o controle do trabalho e da jornada é um dos aspectos críticos e de difícil solução no teletrabalho.

No Brasil, quando o teletrabalho teve que ser adotado rápida e amplamente para enfrentar a pandemia, o país já contava com uma base legal mínima, fornecida na Reforma Trabalhista de 2.017 (Lei 13.467). Ficou logo evidente que a base legal era insuficiente e necessitava de regras adicionais para complementá-la e aperfeiçoá-la. A necessidade ficou ainda mais premente com a chegada do regime híbrido e foi parcialmente atendida pela Medida Provisória 1.108. A MP procurou tratar as questões com maior potencial para a litigiosidade e adotou uma postura de oferecer regras conceituais e pouco detalhadas. De particular importância foi a norma que legalizou e legitimou o regime de trabalho híbrido, de uma maneira sensata e abrangente. O estilo adotado para regulamentar a matéria deixa um campo grande para ser complementada pela negociação coletiva. Este artigo documentou que, embora ainda incipiente, a negociação coletiva poderá dar conta da regulamentação adicional necessária, principalmente se for implementada por meio de acordos coletivos.

Este artigo foi primeiramente publicado no BIF – Boletim Informações Fipe, No 499, de abril/2022.

Referências:

Beckmann, Michael. Working-time autonomy as a management practice. IZA World of Labor Papers. In https://wol.iza.org/uploads/articles/230/pdfs/working-time-autonomy-as-management-practice.pdf?v=1

Fowell, Tiffany. Hybrid work: what is hybrid work and why do employees want it? Envoy Blog. In https://envoy.com/blog/what-is-a-hybrid-work-model/ em 21/04/2022.

Morikawa, Masayuki. Productivity Dynamics of Working from Home during the COVID-19 Pandemic: Evidence from a Panel of Firm Surveys. VOX EU – CEPR, 22 March 2022, in https://voxeu.org/article/productivity-dynamics-working-home .Teodorovicz, Thomaz; Raffaella Sadun, Andrew L. Kun e Orit Shaer. How does working from home during Covid-19 affect what managers do? Evidence from time-use studies. Center for Economic Performance, Discussion Paper No.1844 April 2022

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