Direito Desportivo Imbróglio da Série C do Brasileiro e reflexões sobre o futuro da Justiça Desportiva.

Direito Desportivo

Imbróglio da Série C do Brasileiro e reflexões sobre o futuro da Justiça Desportiva

Jean Nicolau

O imbróglio que atrasou o início da Série C do Campeonato Brasileiro e causou prejuízos aos clubes realça um apenas aparente conflito de competência entre a Justiça Comum e a Justiça Desportiva, além de expor as fragilidades dos órgãos judicantes responsáveis pelo conhecimento de questões relacionadas às competições esportivas nacionais.

O caso

Em 2011 o Rio Branco do Acre recorreu ao Judiciário antes de decisão final do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) do futebol. Em claro descumprimento ao princípio de esgotamento da instância desportiva (art. 217, § 1º e 2º, Constituição Federal), o clube acreano tentava recuperar o direito de mandar partidas na Arena da Floresta. Resultado: exclusão pelo STJD da Série C do Campeonato Brasileiro de 2012.

Sem o Rio Branco, a questão era saber se outra equipe seria conduzida àquela competição e, em caso afirmativo, a quem caberia a vaga. Sempre decisões como estas devem observar critérios técnicos, conforme dispõe o Estatuto do Torcedor (art. 10º). Os times rebaixados não seriam, portanto, legítimos herdeiros da vaga. Ela poderia ficar com o Treze/PB, quinto colocado na Série D em 2011 – os quatro primeiros já haviam garantido a promoção.

As pretensões do clube paraibano foram frustradas por um inusitado acordo extrajudicial firmado entre Rio Branco/AC, Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e STJD, que sequer possui personalidade jurídica independente da CBF, para assegurar a permanência dos acreanos na Série C de 2012, em troca da desistência de medidas judiciais em curso até então.

Em sede de mandado de garantia, o Treze contestou tal acordo. Sem êxito perante o STJD, o clube decidiu ir à Justiça Comum, motivado por suposta recomendação de um auditor daquele tribunal, dias depois desmentida pelo mesmo (1).
A 1a. Vara Cível Federal de Campina Grande acolheu a pretensão do clube, para determinar sua inclusão na Série C do Nacional. O problema é que outras ações também foram distribuídas em Estados diferentes, sempre com o objetivo de garantir a participação de outros dois interessados na competição. Ambos tiveram êxito: os Judiciários do Acre e do Tocantins também se manifestaram a favor de cada um dos clubes locais, respectivamente o Rio Branco e a Araguaína.

O caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Para o ministro Marco Buzzi, como a primeira citação ocorreu na ação em trâmite na Paraíba antes de ajuizadas as outras duas ações, deve ser mantida a competência desse juízo, ao menos até que o STJ volte a se manifestar sobre o caso. Após as férias forenses, o conflito será julgado pela Segunda Seção daquele tribunal. Resultado: até segunda ordem, o Treze está na Série C por força de decisão da Justiça Comum.

Afronta à Justiça Desportiva?

Em outros termos, o STJ prestigiou uma decisão da Justiça Comum sobre matéria estritamente relacionada à competição esportiva.

Ainda que, nestes casos, o recurso ao Judiciário não seja excluído, ele deve (i) respeitar o princípio do esgotamento da instância desportiva (art. 217, CF) e (ii) não prejudicar os efeitos desportivos validamente produzidos em consequência da decisão proferida pelo tribunal desportivo (art.52,§2o, Lei Pelé). Por não prejudicar os efeitos desportivos produzidos, entenda-se converter o prejuízo decorrente de decisão da Justiça Desportiva em indenização por perdas e danos.

A Justiça Desportiva, que apesar do nome não faz parte do Judiciário, é o conjunto de órgãos judicantes exclusivamente competentes para processar e julgar as infrações disciplinares e outras questões relacionadas às competições esportivas (art. 50, Lei Pelé).

Ao manter a validade da decisão de Campina Grande sobre a inclusão do Treze na Série C do Brasileiro, o STJ parece ter ignorado a dicção do art. 52, §2o, da Lei Pelé.

Como evitar recursos à Justiça Comum?

As penalidades contidas no Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) parecem não inibir investidas de clubes perante a Justiça Comum. O Judiciário, por sua vez, costuma ignorar a Lei Pelé ao reconhecer sua competência para interferir em competições esportivas.

A arbitragem, forma alternativa de resolução de controvérsias, pode ser o caminho para evitar este impasse.

A proposta não é inovadora – o próprio Estatuto da Federação Internacional de Futebol (FIFA) indica que as federações nacionais devem prever um tribunal arbitral para evitar recursos de seus membros aos tribunais estatais (art. 64.3) –, mas pode ser eficiente.

A aparente imposição do Estatuto da FIFA não se verifica na prática (vide o caso brasileiro, em que os tribunais esportivos em nada são arbitrais), mas tem uma razão de ser: as sentenças arbitrais são quase que globalmente reconhecidas como sentenças judiciais. Por força do efeito negativo do princípio de competência-competência (2) , toda questão submetida à arbitragem não pode ser reapreciada pelo Judiciário. Não seria diferente em casos relacionados ao esporte.

Conclusão

Se a Justiça Desportiva brasileira fosse composta por tribunais arbitrais, seria mais improvável que o Judiciário reconhecesse sua competência acerca da matéria. Mas, em vista da dificuldade de promover alteração sistêmica dos tribunais desportivos nacionais, uma outra alternativa acomodaria a situação no curto prazo.

Os órgãos judicantes desportivos não sofreriam modificações. Os ajustes seriam realizados oportunamente nos regulamentos de cada competição, que passariam a incluir as chamadas cláusulas arbitrais: em caso de descontentamento com a decisão da Justiça Desportiva, a questão poderia ser submetida à arbitragem. Antes de cada competição a federação organizadora instituiria formação verdadeiramente independente e imparcial, com três árbitros dotados de notório saber jurídico-desportivo.

Esta solução criaria filtro adicional às pretensões de clubes insatisfeitos – legitimamente ou não – com as decisões nem sempre acertadas dos tribunais desportivos brasileiros, cujas independências das respectivas federações e imparcialidade dos julgadores nem sempre resistem a toda prova. Uma vez implementada esta simples medida, o juiz estatal que tentar interferir em competição esportiva violará, além da legislação desportiva, um dos fundamentos da arbitragem. 

(1) – O clube paraibano diz que só foi à Justiça Comum por orientação do STJD: “Deveria o Treze, portanto, buscar a anulação desse acordo perante o juiz competente, isto é, perante o Poder Judiciário e não perante à Justiça Desportiva” (ponto nº 13, acórdão 036/2012). Dias depois, o auditor Francisco Müssnich tentou explicar o sentido da frase indiscutivelmente evitável. Segundo ele, o Treze teria distorcido o sentido da mesma, que indicava apenas a impossibilidade de a Justiça Desportiva apreciar o acordo em questão.
( 2) – Princípio internacionalmente reconhecido e inscrito no art. 8o da lei brasileira de arbitragem segundo o qual compete ao árbitro estatuir sobre sua própria competência. Em virtude do efeito negativo deste princípio, os tribunais estatais devem abster-se de apreciar litígio submetido à arbitragem.

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