A judicialização da Covid-19 nas relações de trabalho

O direito de acesso à Justiça é garantia fundamental prevista no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, e em diversos tratados internacionais de Direitos Humanos. Trata-se de garantia intimamente relacionada ao Estado Democrático de Direito e necessária à concretização de outros direitos fundamentais.

Nesse aspecto, o Poder Judiciário cumpre papel fundamental na efetivação de tais direitos, sobretudo em contextos ainda não enfrentados pelo legislador. A atual pandemia da Covid-19 demonstra com riqueza de exemplos o importante papel da Poder Judiciário no enfrentamento de novas questões.

Conforme levantamento feito pela Coordenadoria de Estatísticas do Tribunal Superior do Trabalho, logo no início da pandemia, entre o período de janeiro a abril de 2020, a Justiça do trabalho já havia recebido mais de 1.700 novos processos em que a Covid19 era tratada de alguma forma.

Após mais de um ano podemos afirmar que esse número se multiplicou exponencialmente e hoje a quantidade de processos laborais em que se discute a atual pandemia ultrapassa 260 mil casos. Embora ainda não haja uma jurisprudência consolidada sobre os diversos assuntos relacionados à pandemia, muitas decisões já podem servir de parâmetro sobre o modo como o tema tem sido acolhido pelos Tribunais da Justiça do Trabalho. Vejamos alguns exemplos.

Um dos temas mais frequentes no tocante à Covid19 é o pedido de reconhecimento de acidente do trabalho por equiparação decorrente da doença. Nesses casos, uma das principais polêmicas diz respeito à prova sobre se o contágio da doença ocorreu no ambiente da empresa ou fora dele.

Em alguns casos, ela pode ser presumida pela própria natureza da atividade desenvolvida, como ocorre em relação aos profissionais que trabalham em hospitais, laboratórios e outros ambientes envolvidos no tratamento de doenças transmissíveis, tal como previsto no Anexo II, do Decreto 3.048/1999.

Entretanto, não estando a atividade desenvolvida prevista no ordenamento jurídico como hipótese de maior risco ao trabalhador, o reconhecimento do acidente do trabalho se torna mais frágil. Apesar disso, ainda assim encontramos decisões que acabam por caracterizar o acidente do trabalho ao aplicar a responsabilidade objetiva ao empregador que não toma medidas adequadas de proteção ao trabalhador. Já outras entendem indispensável a demonstração do nexo causal entre a doença e o trabalho.

Outras ações se voltam para a adoção de medidas de proteção ao trabalhador, possuindo caráter preventivo.

A Terceira Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, por exemplo, reconheceu a um médico empregado em determinado hospital, por ter mais de 60 anos, ser hipertenso e possuir arritmia cardíaca, o direito a ser transferido para setor distinto daquele de sua atuação originária e onde houvesse menor risco de contaminação pela Covid-19.

Também já se observou a tentativa de sindicato profissional exigir medidas de proteção durante a pandemia, como o afastamento de pessoas do grupo de risco e o fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPIs) mediante dissídio coletivo de natureza jurídica, o que foi indeferido pela Seção de Dissídios Coletivos do Tribunal Superior do Trabalho, sob o fundamento de não se tratar do instrumento processual adequado.

Destaca-se, ainda, decisão de primeira instância que reconheceu como legal a dispensa por justa causa de uma auxiliar de limpeza de um hospital que se recusou a ser imunizada contra a covid-19.

Tais exemplos são suficientes para demonstrar a pluralidade de novas questões e desafios jurídicos que a pandemia tem trazido para os Justiça do Trabalho. Ainda há um longo caminho a ser percorrido pela jurisprudência com vistas a oferecer maior segurança jurídica e previsibilidade ao jurisdicionado em tais situações.

Nesse processo interpretativo ressaltamos a necessidade de se buscar os conceitos fundamentais do Direito do Trabalho e os princípios inerentes a ele. Ademais, a pandemia afeta os mais diversos ramos da sociedade, de modo que qualquer resposta aos problemas trazidos por ela há de ser pensadas de forma integrada. No campo do Direito do Trabalho, se faz mais necessário ainda o resgate dos direitos e princípios mais fundamentais de nosso ordenamento jurídico e sustentados pela teoria dos Direitos Fundamentais.

Dessa forma, o maior desafio ao Direito do Trabalho, neste momento de pandemia, parece ser a conciliação de diversos direitos fundamentais, como a proteção do trabalho, da saúde, da livre iniciativa, da liberdade, da autodeterminação, entre muitos outros.

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